Capítulo 11 - Fogo

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"...e a tormenta se inicia".

Novamente aquela voz, mas dessa vez não era um sonho, parecia real. Eu realmente a ouvi, tinha certeza de ter acordado com aquela voz sussurrando em meus ouvidos.

Me levantei com um certo esforço. Meu estômago doía muito, me fazendo sentir enjoo. Um cheiro desagradável de fumaça veio ao meu nariz. Minha visão estava turva e esfumaçada, pensei que a fumaça fosse de minha cabeça, juntamente com as vozes, mas não era.

Espremi os olhos para enxergar o horizonte e um brilho forte vinha do vilarejo, iluminando a calada da noite. Tudo estava em chamas, como se fosse um retrato do próprio domínio de Tenebris.

De cima da colina, eu podia ouvir o barulho que as chamas produziam. Eu podia ouvir o estalo que as madeiras das casas emitiam, como se gritassem por serem consumidas pelo fogo. Podia até mesmo sentir o calor e a tensão que emanavam por aquelas chamas.

Um desespero tomou conta de mim, olhei em volta procurando por Nara, mas não a vi em lugar algum. Comecei a me lembrar de suas palavras, do pedido de perdão, e para que eu ficasse ali. Lembrei do beijo e em seguida do cheiro adocicado.

Deixei todas as perguntas de lado e desci a colina. Eu precisava ter certeza de que todos estavam bem, nem que para isso eu tivesse que passar pelas chamas de Tenebris, e era o que me esperava naquela noite.

A cada vez em que eu chegava mais perto do vilarejo, estranhava o fato de não ouvir gritos. Não havia ninguém correndo para apagar as chamas. Era como se o vilarejo estivesse totalmente abandonado.

À medida em que fui adentrando ao vilarejo, me deparei com uma cena chocante. Havia várias estacas espalhadas pelas ruas, a maioria delas, com pessoas empaladas pela boca, todos moradores do vilarejo. O fogo reluzia no chão rubro, feito do sangue daquelas pessoas.

Eu entrei em pânico. Nunca tinha visto alguém morto em minha frente de uma maneira tão brutal. Alguns deles tinham seus estômagos abertos, suas vísceras caíam para fora e pingavam sangue. As expressões de desespero nos rostos dos mortos, eram amedrontadoras. Senti a bile subindo até minha boca, não pude segurar, então vomitei.

Eu respirava com dificuldade, por causa do pânico e da fumaça. Minhas pernas tremiam, eu não podia acreditar no que estava acontecendo. Parte de mim queria fugir daquele lugar, ir embora para bem longe, mas outra parte se preocupava com as pessoas do vilarejo. Acima de tudo, minha mãe estava em casa, provavelmente sozinha. Eu precisava ir até ela, custasse o que custar, eu não poderia deixar a minha mãe para trás.

Eu segui em direção à minha casa, passando pelas ruas ensanguentadas do vilarejo. Fiquei imóvel, quando percebi sombras mais à frente. Não pareciam ser os moradores da vila. Saqueadores talvez? Não sei, mas precisava ver de mais perto.

Em silêncio, fui me esgueirando por entre as casas, até chegar mais perto. Parei atrás de uma viga para observá-los. Percebi que aqueles homens, vestiam armaduras negras. Eles carregavam os corpos dos moradores até uma fogueira, feita em cima de onde era a fonte do centro do vilarejo.

Em volta da praça, vários corpos carbonizados e outros empalados. Pude reconhecer um dos moradores, era Nick empalado em uma das estacas, ou pelo menos a sua cabeça, junto de seus pais.

Eu estava horrorizado e nem mesmo notei, ao esbarrar em uma tábua, a deixando cair à minha frente. Um daqueles homens notou aquilo e veio em minha direção. Eu me agachei atrás da viga e segurei a respiração.

Eu podia ouvir seus passos vindo em minha direção. Suor descia sobre minha testa. Pude sentir sua presença bem atrás de mim. Eu precisava correr, sair de lá o mais rápido possível. Mas eu não conseguia me mexer, o pânico era tão grande que me mantinha imóvel.

— Ei, você! — um dos homens gritou. Mordi os lábios para não gritar. Era o meu fim, eu terminaria como Nick e os outros. — Pare de procrastinar e vem me ajudar a queimar esses camponeses nojentos.

— Eu escutei alguma coisa, pensei que algum desses porcos pudesse ter escapado. — disse o homem, perto de mim. Ele continuou em silêncio por alguns segundos. Eu estremeci. — Parece que não foi nada, deve ter sido o barulho do fogo.

— Pare de desculpas, seu paspalho. Vai querer que eu te estripe junto com esses camponeses? — disse o outro homem.

— Não senhor, estou indo. — Finalmente, ele começou a se afastar. Pude ouvir seus passos, cada vez mais distantes.

Quando vi que estava seguro sair de lá, me levantei e dei a volta por trás de uma das casas em chamas. Notei que era a loja do senhor Ludwig. Em meio ao pânico, eu nem tinha percebido aonde tinha ido parar.

A loja estava completamente em chamas, eu tive que entrar pelos fundos da oficina. Quando abri a porta, uma fumaça quente veio em meu rosto. Cai para trás, protegendo o rosto com meu antebraço. Metade da oficina tinha desabado e o resto ardia em chamas. Eu era louco de me arriscar entrando lá, mas nunca me perdoaria se o senhor Ludwig estivesse lá dentro precisando de minha ajuda, e eu simplesmente desse as costas.

Tirei meu colete e o usei como máscara para não respirar aquela fumaça sufocante. Entrei na oficina e me deparei com o velho Lud em baixo dos escombros. Parte do teto havia desabado em cima dele. Eu corri até o ferreiro. O coitado parecia inconsciente.

— Aguente firme mestre, vou tirar o senhor daí — falei, enquanto tentava suspender uma enorme viga de madeira.

— Hugh... Garoto, é você? — falou Ludwig, com dificuldade.

— Mestre, o senhor está bem? O que aconteceu aqui?

— Escute garoto, você... Cofcof... Precisa sair daqui... A oficina... Está desabando... — indagou Ludwig, enquanto tossia e falava com dificuldade.

— Não mestre, não vou te deixar aqui. Aguente firme, eu só preciso tirar essa viga aqui e... — falei, enquanto tentava levantar a viga, que não se movia um centímetro.

— NÃO SEJA ESTÚPIDO! — gritou Ludwig, não me deixando terminar de falar. Era incrível, como ele conseguia gritar comigo naquele estado. — Salve a sua vida, não se atreva a perdê-la aqui com um velho como eu.

— Do que você está falando? Eu não vou te deixar aqui para morrer. — Minhas mãos ardiam, de tanta força que eu fazia para levantar a viga. Pude sentir o sangue escorrendo pelo meu pulso.

— Cofcof... Jack, olhe para mim e me escute. Por favor... Eu não tenho muito tempo. — Ludwig, pela primeira vez me chamara pelo nome, e pedira por favor. Ele sempre me chamou de garoto ou pivete. Naquele momento, percebi que era importante para ele que eu o ouvisse. Então, fui até ele e me agachei para ouvi-lo.

— Jack, eu fiz muitas coisas na minha vida... Coisas pelas quais eu me arrependo, não há nada mais justo para mim do que acabar aqui. Mas Jack, você não precisa morrer aqui comigo, vá se salve, corra para bem longe daqui. Não se atreva a morrer com um velho tolo como eu... — disse Ludwig, pegando em minhas mãos.

— Mestre, eu... eu tenho tanto ainda para aprender com o senhor, eu não quero deixá-lo aqui. Eu não me importo com o seu passado, o senhor é uma pessoa boa agora. Não me peça para deixar que morra aqui — falei enquanto lágrimas escorriam em meu rosto. A oficina começou a ranger, metade do telhado caía à minha direita e o fogo aumentava cada vez mais.

— Jack, aqui vai uma última lição. Viva, simplesmente viva e não olhe para trás. Vá garoto, leve seu nome adiante. Seja alguém que me dê ainda mais orgulho do que você já me dera. — Uma lágrima descia de seu rosto. Era a primeira vez que eu o via chorar. — Vá! — ele gritou.

Eu me levantei, largando sua mão com relutância, me afastei. Ao fundo, em meio as chamas, pude ouvir ele dizer:

— Obrigado.

Corri para fora da oficina, e assim que saí, tudo desabou. Fiquei por alguns instantes observando a loja em chamas, lembranças de tudo o que eu passei naquele lugar vinham em minha mente. Lembrava do primeiro dia em que ele me ensinou a forjar uma espada, das suas broncas; suas lições e dos momentos em que ele me contava histórias. Eu fitei o horizonte e lembrei de suas palavras. "Viva e não olhe para trás". Olhei em frente, enxuguei minhas lágrimas e corri até minha casa.  

O Matador de Deuses - TenebrisWhere stories live. Discover now