Capítulo 23 - Meus Demônios

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Ano de 1710, Inverno. Cidade Branca.

Dez anos atrás.

— Acorde seu paspalho! Aqui não é lugar para bêbados dormirem. — Acordei com um balde de água fria em meu rosto. Rapidamente me levantei e me deparei com um senhor de meia idade de um grande bigode branco, aparentemente furioso comigo. — Xô, some daqui — ele enxotava, me ameaçando com um ancinho.

Saí o mais rápido que pude dos estábulos aonde havia adormecido. Pelo visto, fiquei tempo demais ali. O sol já raiava alto naquele dia. Eu tinha passado por tantos maus bocados, que nem mesmo percebi que finalmente tinha chegado à Cidade Branca.

As grandes muralhas da cidade, feitas de tijolos brancos, resplandeciam à luz daquele dia. Os enormes portões abertos me convidavam a adentrar a cidade. Várias pessoas passavam pelos portões livremente, com suas carroças de mercadorias e suas bagagens. Era uma cidade livre para todos. O símbolo do falcão dourado em seus portões confirmava isso.

Ao passar pelos portões, uma visão esplêndida me tomou. Casas muito bem ornamentadas com detalhes em azul, branco e vermelho. Algumas com brasões do falcão dourado em suas janelas, outras com plantas e enfeites dos mais variados tipos. A cidade parecia ser tão bem cuidada, que arriscava a dizer que existia algum tipo de lei que proibia os moradores de deixarem suas casas em mal estado.

Ao fundo, bem na parte mais alta da cidade. A visão que realmente tomava meu fôlego e me fazia sentir um frio na barriga. O esplendoroso Castelo Branco tomava o horizonte distante. Construído sobre as montanhas, elevado sobre a cidade, como se fosse o rei sentado em seu trono e a cidade se curvasse diante dele. Bandeiras rubras e azuis, cintilavam nas torres do castelo.

A cidade era imensa, logo eu sabia que teria que andar bastante até chegar no castelo. Mas não daria para ir até lá no estado em que me encontrava. Minhas roupas em maltrapilhos, toda rasgada e manchadas de sangue. Meu cabelo imundo e meu corpo coberto de lama. Provavelmente me enxotariam de lá, como o dono dos estábulos fizera comigo.

Eu precisava de um banho e de roupas novas. Procurei nos bolsos da capa que Bashkim me dera por minha bolsinha de moedas, mas não a achei. Provavelmente eu a perdera durante a fuga contra aquele cavaleiro branco.

E finalmente a realidade me veio à tona.

Senti um aperto enorme em meu peito. Quase caí no chão, mas me segurei. As lágrimas queriam sair de meus olhos, mas não havia mais nada. Eu só podia sentir ódio e desprezo. Aquela família não merecia aquele fim. Assim como fizeram naquela noite, aquilo tinha se repetido. E dessa vez não era uma ordem secreta do mal ou bandidos, e sim um dos heróis que eu almejava me tornar. Eu estava enganado o tempo todo. O verdadeiro mal não estava escondido nas sombras, mas sim em cada um de nós. A própria humanidade se corrompera. O mundo se corrompera.

Olhei em volta. Pessoas de todos os tipos passavam ao meu redor, presos em seus afazeres e em suas próprias vaidades.

Por fim, eu percebi.

Em meio à toda multidão.

Eu estava sozinho.

· · • • • ✤ • • • · ·

Ah, a cidade branca. A gloriosa cidade branca. Parece ser uma maravilha à primeira vista, mas quando se conhece de verdade, sabe-se que ela não passa de aparências. Ela é como uma linda maçã, com sua casca vermelha e brilhante, mas que por dentro é podre, cheio de larvas e fedendo à morte. E eu aprendi isso da pior forma possível. Digamos que dei a primeira mordida.

A cidade era dividida em quatro distritos. Na qual, cada um tinha seu próprio governante. Não havia um rei, ou duque para governá-la. Já que o único rei governava todo o reino de Misalem. Os quatro governantes, ou regentes, tinham total poder sobre seus distritos, mas não tomavam nenhuma decisão sem antes se reunirem perante o conselho da cidade, que era escolhido pelo próprio povo.

O Matador de Deuses - TenebrisWhere stories live. Discover now