Capítulo 1 - Escuridão

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Ano de 1720, Inverno. Província norte da Cidade Imperial.

— Lorde comandante! — Acordei com um chute de Raed em minha coxa, sendo puxado de sonhos ou memórias de um passado distante e sombrio. Me levantei alerta, já desembainhando a minha espada e colocando em seu pescoço. Raed levantou as mãos e me olhou nos olhos de forma assustada.

— Vai arrancar minha cabeça por te acordar? Você passou o dia inteiro dormindo, se continuasse por mais tempo, os corpos iriam começar a apodrecer com você — disse Raed, empurrando a espada para longe de seu pescoço, me fitando com sua face carrancuda e tez tão escura quanto aquela noite.

— Peço perdão Raed, foi apenas uma reação por instinto — falei enquanto embainhava minha espada de volta. Coloquei minha mão sobre seu ombro e o fitei nos olhos. — Mas da próxima vez em que me chutar, farei questão de cortar suas duas pernas e servir para meus homens no jantar. — Raed tirou minha mão num tapa, deu de costas e saiu andando, bufando e resmungando em Haren, sua língua nativa.

Olhei para minha cama improvisada, uma pilha de defuntos, que Read tinha razão, já estavam começando a cheirar mal. Parece mórbido, dormir sobre uma cama feita de cadáveres, mas depois de tanto tempo na estrada, dormindo ao relento, em pântanos e usando pedras como travesseiro, até que uma cama feita de corpos não era tão ruim assim. Bom, até o fedor começar a ficar insuportável claro, mas com tanto tempo na estrada, você também se acostuma com o mal odor.

Andei em direção à luz das fogueiras, que com exceção de nossas lamparinas, era a única luz que nos restara. Pensei que me acostumaria com o tempo, assim como me acostumei com a fome e o mal cheiro, mas a falta da luz é cada vez mais sufocante. Não há dia nesse mundo, na verdade, não há mais nada nesse lugar além de escuridão, assassinos e... monstros.

— Lorde comandante! — Bran veio me saudar com uma continência. Um garoto loiro, esguio e muito jovem para estar aqui, seus olhos azuis e cheios de vida mostravam que mal sabia que provavelmente não viveria o bastante para chegar à vida adulta. — O capitão Lorenk necessita de sua presença urgentemente — completou Bran.

— Muito bem, leve-me até ele.

Passamos pelo acampamento repleto de soldados desiludidos com suas vidas e cheirando a podridão. Alguns realmente estavam apodrecendo, com suas feridas inflamadas e cheias de moscas. Eu só podia sentir pena daqueles homens, pois eu era o responsável por todos eles. Eu sabia que as suas mortes estavam próximas, e tudo que eu podia fazer, era garantir que seus sacrifícios não seriam em vão. Seus olhares para mim, eram de uma mistura de medo e fé. Como se todos depositassem o pouco da esperança que lhes restara em mim, mas no fundo, sabiam de meus métodos e sabiam o que lhes aguardavam.

— Capitão Lorenk, a que devo o prazer? — Entrei na tenda do capitão, deixando Bran esperando do lado de fora.

A tenda do capitão era a maior do acampamento. Um verdadeiro luxo que não deveríamos ter. Um estandarte com o brasão de um falcão podia ser notado na entrada da tenda, reluzente à luz das tochas, sinalizando a nossa ordem. "Os cavaleiros brancos", éramos chamados, agora somos conhecidos como os guardiões da noite.

Fitei a face de todos no centro da tenda, reunidos em volta de uma mesa improvisada, repleta de mapas e pergaminhos. Lorenk estava em pé, com seu bigode branco e avantajado e com as mãos apoiadas sobre a mesa, junto com os conselheiros de guerra, que aparentavam estar apreensivos.

— Lorde comandante Jack, receio que tenha se perdido no tempo. Estamos esperando suas ordens há mais de dois dias. Por quanto tempo vamos continuar acampados aqui? Precisamos de água e comida para os soldados, e os corpos que o senhor não deixou queimarmos, já estão começando a feder. Precisamos sair deste lugar agora, ou o cheiro dos mortos atrairá mais feras — disse Lorenk, com um semblante cansado. Apesar de velho, o homem era duro e forte. Com certeza aguentaria mais dois dias de batalha.

Eu não disse nada, apenas me aproximei da mesa e comecei a analisar os mapas. Era possível ver todo o reino de Misalem, ou tudo que sobrara dele. A maior parte das grandes cidades não restara nada além de ruínas. Os únicos lugares seguros nesse mundo eram os subterrâneos, onde o restante da população vivia, se escondendo em cavernas e túneis.

Um lugar na superfície ainda resistira. A cidade imperial do Oeste. Seus grandes muros impenetráveis, garantiram que se mantivesse a cidade intacta das criaturas. Mas isso só retardaria a morte da cidade. Aos poucos, a população morria de fome, sede e doenças. Afinal, eles não tinham para onde escapar, a não ser para fora das muralhas. E esse era o nosso objetivo. Fomos incumbidos de limpar a área para que os camponeses pudessem voltar a plantar. Algo que eu considerava inútil, visto que não havia mais sol para as plantações, mas como rei insistira para que fosse feito, eu tive que aceitar. E aqui eu estava, nas linhas de frente, comandando um exército suicida em uma guerra inútil e perdida.

— Não vai falar nada? — Capitão Lorenk gritou e desferiu um murro sobre a mesa. — Mas que desgraça! Você quer matar todos nós? Olhe em volta, estamos cada vez em menor número e aqueles desgraçados com mais carne para se alimentar. Se não houver uma reação sua, voltarei com as tropas para a cidade.

— Tenho certeza de que o rei ficará bastante feliz ao ver seus homens voltando de mãos vazias, com os rabos entre as pernas. — Subi meu olhar para o de Lorenk, que não desviou o seu.

— Então dê uma ordem, comandante — disse Lorenk, me encarando.

— O capitão está certo, lorde comandante. Estamos perdendo a batalha para as feras. Precisamos agir antes que não sobre mais nada — disse Sir Erwin, um dos cavaleiros e meu homem de maior confiança. Ao contrário dos outros, Sir Erwin me ajudava a tomar decisões difíceis, e quando preciso, me contradizia sem nenhum receio.

Olhei para aqueles conselheiros, todos aparentando concordar com Erwin. Todos velhos, com exceção de Sir Erwin, com bastante experiência em batalhas, mas mesmo assim assustados, novamente com exceção de Sir Erwin, que se mantinha tranquilo.

— Pois bem, parece que já esperei o suficiente. Vamos à guerra! — falei, finalmente aliviando a tensão do local, fitando o rosto de todos. Cada um acenou a cabeça em sinal de concordância. — Lorenk, mande a ordem para que peguem qualquer tecido e madeira que acharem e coloquem em volta do acampamento. Quero que usem as barracas e até esses mapas, quero que façam um grande círculo com essas tralhas e depois joguem o óleo de todas as lamparinas. Coloquem também os corpos nas tralhas, gordura e carne podre queimam bem. Quero esse acampamento limpo, sem nenhum obstáculo além do círculo. Entendido?

— M-mas, senhor se queimarmos nosso acampamento não... — Lorenk começou a falar, mas eu o interrompi.

— Pensei ter sido claro capitão! Isso é uma ordem, e não voltarei a repetir — o repreendi com firmeza, não gosto de ser contestado por ninguém, muito menos por um subordinado. Virei as costas e saí da barraca, deixando o velho se remoendo de raiva com a minha ordem.

Bran voltou a me seguir, se dizia meu escudeiro, mas eu nunca o nomeara como tal. Eu não preciso de um escudeiro, não uso armadura para que ele me vista, não tenho um escudo para que ele carregue e não tenho o que ensiná-lo.

Fui até a barraca em que se encontrava meus pertences. Mandei Bran esperar do lado de fora. A barraca era pequena e estava praticamente vazia, a não ser por um baú. Andei até ele, e sem receio o abri. Nele havia algumas peças velhas de roupas, joguei tudo fora e estiquei a mão para pegar o que realmente me importava. No fundo do baú, uma caixinha de joias bem simples, feita de uma madeira velha e gasta, sem nenhum adorno ou coisa parecida. Estava trancada por algo semelhante a magia para que ninguém a abrisse além de mim. Eu a fitei e senti medo pela primeira vez, não por mim, mas pelo o que estava por vir.

— Lorde comandante, o senhor precisa ver isso! — Bran entrou assustado dentro da barraca e com os olhos arregalados. Me levantei e pendurei a caixinha no cinto da calça. Saí da barraca já sabendo o que estava para acontecer.

As feras em breve voltariam a nos atacar.

O Matador de Deuses - TenebrisOnde histórias criam vida. Descubra agora