Capítulo 19 - Recomeço

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— Através de Lumina, assim seja mostrada a luz em vosso ser. Que vosso caminho e vossa mente sejam iluminados. Afastada seja toda a escuridão. Assim como Tenebris traz seus domínios contra nós, também Lumina traz a paz, a magnificência, e nos mostra o verdadeiro caminho; o caminho da luz. — Padre Frey rezava junto aos seus fiéis, como de costume fazer toda manhã.

Me sentei em um dos bancos no fundo da catedral e permaneci em silêncio esperando o fim daquele ajuntamento. Eu achava aquilo muito monótono, por vezes eu cochilava, também devido ao fato de que eu não estava dormindo bem há semanas. Não só os pesadelos me tiravam o sono, como também os acontecimentos anteriores.

Eu me sentia mal em pensar que todas aquelas crianças haviam morrido. Depois de eu ter entregado a carta ao padre, os cavaleiros brancos ajudaram na busca dos restos mortais das crianças para que fossem devidamente enterrados e velados. Padre Frey cuidou de dar a notícia pesarosa a toda a cidade. A manhã seguinte foi seguida de choros e lamentações por toda a cidade. Os cavaleiros brancos, no fim das contas, levaram toda a honra. Sir Lawrence se quer foi mencionado, e eu também não. Preferi que fosse assim.

Eu estava tão perdido em meus pensamentos, que nem mesmo percebi Loretta se sentando ao meu lado. Me assustei quando ela tocou meu ombro.

— E então, já se resolveu? — perguntou Loretta com certa tranquilidade. — Ainda aparenta ter dúvidas.

— Pelo contrário. — Lancei-a um olhar de convicção.

Aquela noite de certa forma tinha me mudado. Havia tomado minha decisão. Independentemente do que acontecesse, eu nunca mais fugiria. Eu mostraria a Nara o quão forte eu poderia ser.

— Isso é ótimo Jack! — Loretta meneou um breve sorriso. — E então, vai me contar o que pretende fazer agora?

— Eu estou partindo, rumo ao meu próprio caminho.

— E que caminho seria esse? — perguntou Loretta, com uma expressão de curiosidade.

— Me tornarei um cavaleiro branco.

Não foi uma decisão repentina, na verdade, ela começou a ser tomada olhei nos olhos daquele cavaleiro branco. Sir Lawrence estava certo ao dizer que eu tinha meus próprios monstros para caçar. Me tornar um cavaleiro branco, me daria a força necessária. Sem contar que com o título de cavaleiro, eu teria acesso a bibliotecas e informações que poderiam me ajudar a encontrar o paradeiro dos cavaleiros negros.

Loretta aparentou ficar sem reação com a minha resposta. Por sorte, o ajuntamento tinha terminado e padre Frey vinha até nós.

— Queria falar comigo, Jack? — disse padre Frey, fazendo o sinal sagrado da benção do Deus da luz, tocando a ponta dos dedos em cima do coração e levantando até os olhos.

— Sim, padre. — Devolvi a saudação. — Eu estou deixando a catedral. Vim agradecê-lo por tudo o que fez por mim e dizer que, algum dia, com toda certeza, irei retribuir.

— Eu não fiz nada, Jack. Não há o que agradecer. Saiba que é minha função ajudar a todos que precisam de ajuda. Afinal, é isso o que nosso Deus pede que façamos. — Padre Frey colocou as mãos em meus ombros e continuou dizendo: — Eu estou feliz que você tenha finalmente resolvido seguir em frente. Saiba que você é a prova viva de que nosso Deus faz milagres.

— Você ainda pretende procurar por aquele homem? — perguntou Loretta, cortando a fala de Frey.

Acenei com a cabeça. Pude notar que padre Frey ficou um pouco incomodado com aquela pergunta. Ele não gostava que tocássemos naquele assunto. Aquele homem era o real motivo por eu ainda estar vivo. Mas eu entendia o fato de afirmarem que era um milagre. Afinal, quantas pessoas sobrevivem a um ferimento de uma lâmina na barriga? No máximo, sobreviveria por um ou dois dias. No meu caso, era mais de uma perfuração, sem contar todo o sangue que perdi enquanto boiava rio abaixo.

— Não fale sobre aquele herege nesse lugar, Loretta! — repreendeu padre Frey com um semblante pesado. — Se não fosse pela insistência daquela nobre, eu nunca teria permitido que ele fizesse tal ato dentro dessas portas.

Eu fui achado e levado até a igreja por uma nobre que passava perto do rio Lum. Fui encontrado praticamente sem vida, boiando naquele rio. Eu ainda tinha curtas lembranças daquele momento. O barulho da carroça e da voz daquela garota dizendo para que eu não desistisse, suas vestes anis, cabelos negros e olhos azuis como o céu. Em minhas memórias, somente as cores permaneciam. Era uma pena, já que ela não quisera nem mesmo dizer seu nome quando me deixara aqui. Eu realmente queria agradecê-la.

— Talvez o cientista seja um herege, mas nada impede que nosso Deus tenha o usado como ferramenta para salvar o Jack. Se ele está vivo, foi também por causa dele — retrucou Loretta.

O cientista... ou pelo menos era assim que ele se denominava. Eu não sabia muito bem o que o termo cientista significava, talvez algum tipo de médico. Eu não me lembrava do rosto daquele homem, ou de sua voz, apenas de um detalhe; seu sorriso. Um sorriso tenebroso e repleto de dentes prateados. Ele sorria enquanto costurava meus ferimentos, como se estivesse em êxtase com aquilo. Pelo o que me contavam, o cientista era conhecido por fazer magia negra e feitiçarias.

Minha recuperação fora lenta e dolorosa. Por muito tempo, sofri com pesadelos e febres altíssimas. Houve momentos em que eu tivera de ser amarrado à cama. Eu gritava e proferia palavras irreconhecíveis. Me contorcia tanto que meus ferimentos voltavam a abrir. Padre Frey dizia que eu estava possuído pelo próprio Tenebris. Ele falava que aquilo era culpa da magia negra daquele homem. Se aquele tal cientista havia usado mesmo alguma magia em mim, eu não tinha certeza, mas sabia que precisava encontrá-lo. Talvez ele pudesse me dar respostas para as minhas perguntas.

— De qualquer forma... — suspirou padre Frey. — Não acho que posso impedir o garoto de ir atrás de respostas. — Padre Frey tirou do bolso três arguis de prata e colocou em minha mão.

— Padre Frey, e-eu... eu não posso aceitar. — Tentei devolver, mas ele insistiu para que eu ficasse com as moedas.

— Fique com elas, vai ser de grande ajuda em sua jornada. E também, você trabalhou de graça aqui durante dois anos. Nada mais justo do que um pagamento digno de seus serviços. — Padre frey me abraçou dando tapinhas em minhas costas. — Vá em paz, garoto, e se cuide.

Loretta também me abraçou e começou a chorar. Nunca fui bom com despedidas, mas apenas aproveitei aquele momento, pois não sabia se seria a última vez em que eu os veria de novo.

— Não esquecerei a dívida que tenho com vocês.

Queria poder chorar naquele momento, mas minhas lágrimas já tinham se secado há muito tempo. Meus sentimentos eram reais, e eu não queria perdê-los, não queria perder mais ninguém que amava. Eles sabiam disso e assentiram, me prometendo que ficariam bem, mesmo eu sabendo que, no fundo, eu nunca mais os veria novamente.

O Matador de Deuses - TenebrisWhere stories live. Discover now