sonhos liquidos

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uni-me a um mundo líquido e gasoso de chuvas leves e marés suaves. foi quando um anjo segurou um rosto que não era meu em mãos de ar e perguntou se eu abandonara todos os horrores e tesouros que pintam o mundo sólido. "que são tais coisas?" perguntei. só conheço esse mundo.

não sei nada sobre pesadelos noturnos nem mágicos devaneios diurnos. não sei nada sobre o ferro e o ouro e madeira. conheço apenas a água, o fogo, o ar e a terra viva sob mim, conheço apenas o que me conhece, o que me acolhe, e desconheço tudo que possuo ou que me possua. acontece que, ao abandonar todo o conhecimento simplório e complexo de um mundo em que coisas concretas se pertencem — onde uns tem menos do que outros e alguns valorizam certas coisas mais e menos — ganhei um conhecimento muito mais denso e muito mais simples. eu digo ao anjo que não abandonei nada. cheguei, na verdade, à conclusão de que nada nunca me pertenceu. eu simplesmente coexisti com coisas que me agradaram.

coisas físicas não podem te pertencer. apenas o que vive no mesmo plano da sua consciência é seu. a verdade me pertence. a virtude, o amor e a empatia. o conhecimento. as cores que pinto aqui dentro, os mundos que construo aqui dentro, a vida que crio aqui dentro. me pertencem. as coisas líquidas e gasosas. e o anjo. a mim pertence o anjo, também. é o que digo a ele. dos pesadelos e devaneios desconheço. são os humanos, os concretos, os sólidos. mas os sonhos líquidos? estes eu conheço. estes eu possuo. com estes eu coexisto. o anjo, eu, e os sonhos líquidos. somos todos o mesmo mundo. a esse mundo eu me uni. esse mundo criei. este mundo pertence a mim, e eu pertenço a ele. mas não possuo nada. apenas abraço aquilo que me abraça.

chá e rendaWhere stories live. Discover now