Réquiem

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I.

Era uma manhã de abril quando encontramos o corpo
O abril era claro em nosso descuido — feriado de Páscoa, dias repletos de nada, de tudo, de quietude —
E gritante naquele branco galáctico pingando dos galhos,
Cachoeiras lentas e silentes contra a brisa

Ainda no seio do tenro verdor brincávamos que as árvores em flor eram fantasmas
Noivas abandonadas no altar — alvas e amaldiçoadas
Não muito diferentes da massa perolada de
tecido ensopado e pele mármore e longas mechas corvinas
Que agora surgia na praia de nosso lago local, uma limneida em repouso

II.

Os olhos vítreos e leitosos espelhando a brancura do céu de chuvas
E estranhamente, uma sombra de meiguice pairando acima de sua decadência,
Como um cacho de jasmim fresco cobrindo a podridão d'um cervo na estrada,
Ou os perfumes da flora livre pesando em jardins a muito esquecidos,
Relegados a uma estranha meia-vida de assombração; a selvageria delicada de espectros vagueando por limbos de leite e veludo

Relíquia e nova vida, encarava-nos como mãe e filha,
Carregada da estranha brandura de fantasmas e a frescura específica da morte
Feito os quatro lírios perfeitos e brancos, presos entre
As mãos vampirescas d'um cadáver jovem
— As unhas longas e escuras, os dedos de marfim esculpido —
O tipo de pesar que derrama no choro quieto de pais e d'um primeiro amor — inocência e morte pingando d'um copo de leite
Lirium Candidum, pela candura que nos toma
Quando voltamos ao útero morno de nossa primeira mãe

III.

Meus irmãos, brilhando com uma curiosidade adolescente por cima do temor,
A animação incandescente da descoberta vencendo a aversão natural,
Brincaram que o fóssil parecia-se levemente comigo
E amenizaram para não tornar a situação ainda mais sinistra;
A verdade é que aquele corpo poderia ser minha irmã

E quando nós a deixamos à margem, estranha Ofélia
Para escorregar à água e retornar à sua deriva lacustre
Combinando que jamais mencionaríamos aquilo novamente
Não pude deixar de guardar aquela perfeita e desprezível gêmea

Ali tecemos um fio de aranha,
Argênteo e frágil, decorado por gotas de orvalho
Como as pérolas barrocas que ainda brilhavam nas orelhas da morta
Surgindo feito estrelas por entre as ondas de petróleo do cabelo
Um segredo espectral para nos servir de lembrança e
Amarrar ainda mais justas as linhas da fraternidade

Uma noiva perdida e uma ninfa esquecida, a filha falecida caída no rio
Fosse por rigor mortis ou encantamento, ainda perfeitamente posada;
As flores, as pérolas, as joias sob a água
E os olhos fechados, mas como que abertos, a boca relaxada,
Mas como que contorcida em sorriso

IV.

Cadáver do sol, corpo d'água, carcaça lunar
Você é o coração do corpo da minha mão
Não te preocupes,
Que perpétua carrego tua via-láctea nas aortas
E se ainda vives em peito d'aurora, é no meu coração que bate a vida rósea
És uma besta encantadora, meu cadáver de cadáveres,
Deidade sol-lunar de icor e essência lírial

Me pergunto às vezes nos breus lisos de noites pesadas
Se não temes por si; se não temeu por mim
Mas como poderia?
Esqueço-me por vezes que és galáxia,
Carpa de leitos albinos
E assim não teme a morte
Fábula antiga à deriva de azuis perolados
Feito um astro cadente na atmosfera de Netuno
Tonta com luar e enjoada do ritmo constante
Dessas antigas canções de ninar que canta a correnteza

E por que temeria Tânatos?
Nada que é vivo é mortal, e em morte não se recorda as delícias da vida
Coração de corações, vais ouvir?
Te amo porque amas com o amor de estrelas
E choras o choro de corações
Parta em paz, doce irmã, parta em ternura
Parta dentre a honestidade d'um amor póstumo e medieval
Doce daminha do lírios
Teu lancelot era o mundo

V.

Ficamos parados em um semi-círculo por algum tempo,
As três crianças descalças e chocadas, cabelos emaranhados
E roupas manchadas,
A adrenalina das corridas por colinas se deliquando para dentro do pânico da descoberta

Fosse pela beleza tradicional daquela ninfa morta
Ou pelo encanto estranho e mágico da morte,
Desejávamos em silêncio que partisse como chegou,
Em silêncio, em paz, brilhando com a graça de cisnes
E a brisa recitava a missa conosco:
Senhor, concede-lhe o eterno descanso...

VI.

Quando desceu a fresca noite, pesada em negro e água,
Já estamos vestidos em pijamas de flanela com cotovelos e joelhos desbotados
A lareira acesa, o fogo laranja, as sombras em variantes tons de cinza
E tudo tão sólido e quente e familiar que me pareceu impossível que
Ainda naquele dia tivéssemos nos deparado com uma maravilha tão sideral
Branca e fria como o fogo das estrelas

Aqui dentro não há constelações nem lírios, apenas chamas
E a manteiga derretida do ar beija a lã macia das cobertas
Que beija o crepitar do fogo, incandescente canção de ninar
Que beija a respiração constante e ritmada do sono de meus irmãos

Tenho um sonho recorrente desde então;
Morro e meu corpo flutua à deriva até alcançar o litoral perolado d'um planeta estrangeiro
Onde as flores transpiram o néctar leitoso de estrelas cadentes
E onde mora minha irmã

chá e rendaDär berättelser lever. Upptäck nu