Menina, Devorando

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Sinto-me em ti; arranquei um pedaço necrosado de meu útero e encaixei no teu, mesmo que apodrecesse o resto dos teus órgãos. Sei que te firo em minha colonização de teu corpo; sei que te transformo em terror com meus feitiços vermelho-vinho. Ainda assim — Ainda te enveneno com a ternura de meus dedos transformados em flora, com a suavidade milenar do fungi que me cresce nas juntas, debaixo das longas e arruinadas unhas; ainda assim te beijo com minha boca-túmulo-útero que assassina o mundo e dá a luz a assombrações; sou esfomeada por ti, minha terrível ilusão, minha mais querida miragem enquanto vago pelo deserto do mundo. Quando me viu, observou a delgadeza de meus membros cervídeos... esqueceste de abrir minha barriga a procura de vermes. A pelagem flavescente e macia encharcada em sangue velho. E eu te amo, eu te amo, eu te amo, minha mais ardente querida, minha libélula em um pote de vidro; eu te amo; eu te amo, eu te amo. Conjurei-te dos sonhos mais terríveis, fantasma alabastro no fim dos corredores pervertidos do palácio de minha mente. Mas esqueceste da fome. Te amo, desesperadamente; és dona do passado putrefato que me ocupa o seio. Por isso te consumo. O abraço do amante como a tumba cinza-rocha da minha humanidade: é esse o desejo incandescente que me devora por dentro, corrompe meu corpo frágil até apodrecer, me leva mais perto das águas profundas do que nunca. É na faminta e brutal terra dos monstros que eu floresço feiticeira, que redescubro o corpo como monstruoso e divino, uma floresta labiríntica regada com poções secretas. Como cresce minha curiosidade por mim mesma! Retrocedo e avanço, corpo alvo de renda; meus pés são silentes sobre a superfície do mundo; meu corpo desmonta, remonta, devora; engulo Zéfiro e inverto o útero e o coração de lugar; há brisas em meu estômago, pedaços do cosmos esquecidos entre as curvas do intestino delgado. Me escuta? Alimento-me dos seres intangíveis nas remotas beiras do mundo; mastigo devagar, com prazer, porque as belezas translúcidas explodem na língua como que para recriar o Big Bang no céu da boca; aproxima-te de mim, sejas audaciosa: eis o cadáver do universo, roído até os leite-brancos ossos, desnudo, humilhado. Não! Não leite-brancos: o branco dos ossos é morte-branco apenas, nada mais, nada além disso. Há uma alvura particular que pertence a morte: perdão, perdão, perdão. Desmonto-me em branco e carmim, vampírica, espírito noturno. exceto que em meu peito vive sol eterno, querido Febos Imortal, profeta-poeta insano. Cuspo pra fora Zéfiro: vais e não retornas, que o mundo exige suas correntes! Mas a mudança útero-coração em mim é permanente. alimento-me de criação e a criação é a destruição; infantil, desmonto todos os meus brinquedos, desfio a barra da saia das grandes florestas do mundo. Ah, não temam, dríades esmeraldinas! No meu estômago encontrarão um segundo universo. Carmim, carmim, carmim. Sou o fantasma do mundo, devorando o mundo. Te engulo, te amo, te assombro. Chama meu nome! Ofereces ele ao mundo, para que seus vales sombrios o repitam, como Eco fazia o nome amaldiçoado de Narciso. Me denomina fantasma! Os espíritos ou aguardam a chegada da profecia ou prendem-se aos mecanismos de relógio da história de novo e de novo. Repetição. Espera. Repetição. espera. Não sentes fome? Não escutas as constelações que acordam no teu útero, ávidas pelo mundo, ávidas por nascer? Dói o ventre — escorre sangue pelas coxas, escuro e viscoso, e acende a lareira d'um novo lar, mas agora é sangue que bombeia do peito, invertido, corrompido. Beleza nasce apenas da perversão: trepadeiras escuras engolindo os contornos perfeitos do mármore; o mar, que engole a brancura da costa, que faz definhar a rocha; Afrodite Urania, que engole o mar e o céu e ascende, esculpida de madrepérola; a neve que engole o mundo com seus lábios pálidos. Entende, entende a fome? Somos nós os seres divinos --- deformei-me divina! com audácia fiz-me divina! --- que sentimos no borbulhante âmago áureo o puro desejo, e o puro desejo é o desejo dos lobos, da besta que devora; é o Caos que exige, tecido na pele de todas as coisas, implora que consumamos, que cresçamos, que abocanhemos a carne macia da Realidade. Todo ato é um ato de fome. É Inverno, anuncia o ar. É o tempo de Kione. Apolo cochila em airosa cama cândida, de trás d'um dossel celeste emite luz suave, diluída. É doce e impoluto meu senhor, e ainda assim devora. Engole o mundo em luz alienígena, o colore em tons etéreos, faz do que há de ser telúrico, incorpóreo. Perverte as formas sólidas da Terra e faz delas reais e impossíveis como notas musicais. Senhor da lira, que empanturra-se de alma, e da flecha, que como eu engole os ventos e se transforma; da cura, que come a força para remontar a carne, e da praga que a mastiga, violenta, mágica. Fartar-se é para as feiticeiras e os deuses, que do cerne estranho da natureza erguem ou criam-se. É isso que fiz do meu corpo de primavera: feito oferenda despi-me dele para parir o corpo do inverno, mais estranho, mais esquivo, mais celeste. Devorei a mim mesma e ascendi do estômago destruído como os jacintos surgiram do sangue daquele pobre menino. Sobre as curvas do meu pescoço escorrem os néctares e sucos do núcleo de um planeta. Despedacei Júpiter e Vênus, tenho restos de Marte grudados no céu da boca. As cores siderais são para as bruxas e os príncipes, que não tremem perante a grandeza, mas riem, arrogantes e divertidos. Apodreço e de meus próprios detritos eu floresço, fantasmagórica feito um salgueiro-chorão. O cadáver lúgubre jazendo nas catedrais de Pã: ilusórios verdes e lavandas unidos em algo quase-humano. Que sou eu? Chama-me de criatura. Uma besta. Não, estes são demais corpóreos... De fato eu habito o mundo da carne, festejo nele. Mas não, construí-me de assombração, da feitiçaria dos mais antigos ofícios da Natureza, selvagens e luminosos... Aparição. Vagueio pelos devaneios desse planeta e de seus céus, o sonhos que ecoam pelos ventos como a luz de signos extintos; sou metade de mim mesma, a outra metade oferecida ao coração do Ser pelo presente da divindade. Aparição. Assim podes propriamente me chamar; um nome colhido das sombras, um de nossos muito presentes. Não carrego identidades humanas além daquelas de amor. Querida, você diria, se, como um pássaro, eu surgissem no seu parapeito, branco-marfim e silente. Querida, só por um momento, entre, deixe os ares e escolha minha cama quente, os lençóis estão limpos e as velas estão quase morrendo. E eu te observaria com meus olhos sinistros por tempo demais, esses olhos que te assustam e fascinam. Meus demasiado grandes olhos, esfomeados, vagos, inumanos. E eu deixaria a janela e te devoraria --- por amor. Vilão! Você poderia me chamar, se eu aparecesse em seus sonhos coberto por terra e satim e trepadeiras e feitiços. Vilão! Ousas invadir meus segredo segredos? Aqui não é lugar para tuas ensanguentadas garras. Ambos nomes carrego por causa de sua ignorância. Não posso ser amada ou temido embora você não entenda isso e assim eu aceito que só posso te trazer para perto da verdade esse tanto. Não posso entrar tua morna cama, pois sou o calor ao teu lado. Não posso invadir as cavernas secretas do teu coração, porque não são secretas para mim! Devorei o mundo e eu mesma e assim rendi minha carne ao tecido da existência. Corpo; sim, esse nome também carrego. Mas não o reconheço um nome humano. O saboreio na boca, o adoro, me deleito nele. Corpos d'água, corpos celestes, corpos mortos, corpos vivos. O corpo devora e é devorado. Todo ato é um ato de fome. Sim, e todo corpo é um templo à fome também... Outros nomes me jogam: não os apanho. O que chamavam minha forma? Há um nome que eu meio-carrego como uma memória agridoce do meu tempo de primavera. "Menina". Sim, eu ainda ocupo esse espaço, violentamente, transbordando. Os laços e cachos e risos e maldade e crueldade e calculismo --- boniteza: eu a devorei. A corrompi e transformei em Beleza. Sim, eu ocupo o espaço de menina, mas o corrompo. Pois sou divino e por tanto impudico. 'Inda lembro-me de como a vergonha deitava-se sob a pele de meu corpo-primavera, como se eu tivesse nascido com ele, embora ninguém o faça. Princesa, um nome que não carrego, definido por tão delicada pele. Eu sei que a ervilha está embaixo de tantos colchões, mas não por ser frágil; porque ela também irei devorar, porque já fui a ervilha e as plumas e o cisne antes disso. A Menina não devora: ela é modesta demais. Modéstia? Meu corpo é o corpo do Mundo e eu o carrego nu e obsceno. Aproprio os vestidos claros --- faço da brancura da castidade a brancura impiedosa do inverno. Aproprio as jóias --- faço do brilho da boniteza o brilho do desejo. Aproprio a delicadeza --- as formas brandas da timidez metamorfoseiam-se na sinistra suavidade dos espíritos. Tênue como um ser que está em todo lugar, não um que se esconde atrás das dobras do espaço. Nunca mais acovardo-me, nunca mais tento, inutilmente esconder minha fome em cuidadosas caixas de marfim. Cansei-me demais das implicações de uma forma-menina. De qualquer coisa que possa me definir, me restringir, me repreender. Desenrolo-me e teço-me de novo em tapeçarias de feitiçaria. As cenas brilhantes de Circe, linhas banhadas em veneno; a feiticeira é mulher e também não é. Criatura das florestas, viperina e bela. Sou Aracne mas agora Atena faz vista grossa, pois não sou capaz de arrependimento e portanto impossível de punir. Faço o trabalho dos demônios com doçura; sou um fantasma cintilante construído dos antigos feitiços; uma sombra de luzes; a luz perolada da manhã nascente que engole o breu, suave e feroz; tenra como as cantigas de ninar dos santos, fogo-alva e distante. Meus dentes são afiados e minhas vontades incontidas. De novo eu transformo, de novo eu me deito na terra para apodrecer e levantar e dar luz à uma estrela. Eu banqueteio; o universo é uma fruta pronta para a colheita. Atentai-vos ao branco e carmim de minha boca quando se agiganta. Menina, devorando.

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