Cerco, Um Conto

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Um corpo obeso se deitava sobre a colcha de retalhos da paisagem — os bosques, as fazendas, os prados selvagens — com todo seu peso de chumbo. O céu brilhava liso e prateado como o interior d'uma ostra, ou algo como isso — a memória de uma ostra, talvez, pois a antiguidade da minha a distorce para impressionante mercúrio congelado. No chão, a comparação preferível seria a um formigueiro. Era um dia ordinário em sua totalidade. O odor da atmosfera, a sincronia de passos, a rudeza de tecido sobre a pele macia; uma monotonia geral na acepção mais pura da palavra — todos os sentidos cobertos pela mesma pasta anestésica cinzenta e homogênea, tornados inúteis pela austeridade de seus estímulos.

Constantemente penso que a expressão "paz antes da tempestade" está errada por natureza, e também por aplicação. É o quarto mês de cerco, e já sobrevivi tempestades metafóricas e literais o suficiente para falar com certa autoridade. O que paira no ar antes da tempestade não é paz, e sim eletricidade, uma atmosfera tensa e frágil, como se as cordas que seguram o teatro de marionetes estivessem esticadas até o ponto de quase rasgar. De certa forma, a tempestade é a verdadeira paz, e a resolução satisfatória não é um retorno às cordas relaxadas, e sim o estampido de seu estourar.

A espera é doente. Infeccionada. Fede à praga e podridão, e o faz como os quartos isolados de quarentenas, toda a repugnância trancada num mesmo recipiente, um tipo se sobrepondo ao outro. A espera é túmida e pulsante e não explode. Ela treme com febre e é cegada por insônia.

Às vezes, acordo de repente no meio da noite, desorientada, febril, suando e sufocando. Escapo dos cobertores e corro, ainda de cabelo solto, ainda de camisola, os pés ainda descalços. Corro como uma criança que acabou de aprender a fazê-lo, como um cervo recém nascido: tropeço, caio, tateio com insegurança. Naqueles minutos estou bêbada e meio adormecida, o mundo é gritante e o ar rarefeito, minha pele apertada demais para meu espírito e minha caixa torácica quente demais para meu coração, meu crânio escuro demais para que meu cérebro trabalhe. Sou um animal sonâmbulo e envenenado, me desmanchando em delírio, correndo como que para de escapar de um perseguidor imaginário. Até que, finalmente, caio de quatro contra a terra úmida e as folhas crocantes e não consigo mais me levantar, e vomito, tremendo, como se uma mão de vento agarrasse meus intestinos com dedos de aço.

Esse estado quase animalesco, o padecimento incandescente, essa é a eletricidade leprosa da ânsia. E a tempestade do vômito — a contração violenta do abdômen, o ácido corroendo a garganta, o som repugnante do líquido contra o chão — é sucedida pelo frescor da noite contra a pele, o ar a minha volta tornando-se confortável, e o liso escuro da noite um tranquilo lago, em vez de breu assombrado, em vez das paredes de fuligem do interior d'um forno. Uma paz estranha, menos doce do que açúcar e menos salgada do que sal, as proporções do universo fazendo-se naturais de novo.

As noites passadas em um cerco são mágicas. Qualquer um que já as tenha vivido lhe diria o mesmo — isso independente da guerra, do tempo, do lugar. Elas não são maravilhosas, mas cheias de maravilha; as formas do dia se distorcem no piche, se tornam criaturas fantásticas. Na maior parte delas, vejo um cerco com galhadas manchadas de sangue, às vezes adornadas por tripas e nervos como o galho de uma videira, metade do rosto como a de um cadáver, rosada e decadente. Seus olhos brilham vazios contra a lua. Não sei de onde ele vem e as vezes não me lembro onde o vi; só me recordo de o ter feito.

Os dias são piores, porque não vejo nada além da verdade. Vegetação rasteira, lama batida, ferro enferrujado e rostos enrugados... veludo esfarrapado, velas aromáticas baratas, tapetes decadentes. Nessa terra, as tardes são quase sempre dominadas por um clima opressor, o céu nublado, o ar quente e estagnado. O dia é extremamente real, enquanto as noite assumem um caráter sonial. Ao tormento diurno falta toda a beleza, a terrível, psicodélica, adorabilidade do marasmo.

chá e rendaWhere stories live. Discover now