Prólogo de "Jardins de Netuno"

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[Duas Luas — GALATEIA e LARISSA — se encontram nos Jardins de Netuno. A luz é perolada e azul. Estranhas flores brancas crescem de canteiros feitos de bruma.]

GALATEIA
[encarando o horizonte]
Larissa, toma-me a mão.

[uma pausa: silêncio. LARISSA está agachada perto do canteiro, de costas para a irmã. ela não responde por alguns segundos]

LARISSA
[encarando as flores]
Estranho, irmã, que fales assim de repente
Já vimos mil vezes o sol virgem e poente
Desde que por último costuraste tua rima

O que te corta o silêncio assim, repentina?
O que desmancha tua misteriosa sina?
Tuas divinações são raras áureas; seu o destino perverso

Mesmo que encantada a estrofe e belo o verso

GALATEIA
[se virando pra LARISSA]
Não me estranhe com essas linhas tortas:
Não sou menos agourenta do que ti, visto
Que as mesmas linfas proféticas nos percorrem
As aortas

Sonho mais do que digo, pois peço lentamente;
Por vezes desejo a mim mesma, antropomorfa estrela-cadente;
O faço em silêncio, em frente a espelhos d'água, narciso ardente

Não ardo com ânsia, apenas fresco desejo,
O que em si é uma forma de esperança; tenro exemplo de minha eterna inocência
Como tu, sou nada além de aérea fada
Sonho e sou sonhada, quieta faço-me alada,
E desço do ar, acordada, apenas ao som de trombetas

LARISSA
[se levantando e se virando para a GALATEIA]
Minhas linhas não teço de julgamento, lua irmã
E não julgo tua poesia qualquer coisa além de sã
Sabes que em meu peito não cresço amargo amor

Mas não posso em verdade negar certo temor
Que me acomete frente a teu enigma em flor
Tremo diante dos divinos mantos do futuro

Vê, tais trombetas que como Horas por ti zelam
Abrem a própria ferida que eternamente suturo

És certa e verdadeira quando diz que a mesma água nos percorre as veias
Mas não o seria se dissesse que partilhamos dos mesmos descansos e mesmas ceias
Somos o que somos, cara irmã, como é da natureza dos espíritos

E se tua angélica voz traz notícia de fagulhas
Aos áqueos tecidos negros do Universo
São as minhas mãos que começam a rezar por agulhas

GALATEIA
Somos o que somos, como é da natureza dos espíritos
E o somos perpétuas, como é da natureza de alegorias
Mas nos desdobramos em faces, como é da natureza de luas
Não proclamo destino perverso, visto que tal coisa é fábula
Prepotência mortal aos pés de corpos divinos

O futuro se despe frente a mim em curvas estreladas
E suas verdades são nuas
Não te preocupes com suas agulhas, que a epiderme do cosmos não se altera
E certas feridas não exigem suturas

LARISSA
Assumo inteira aqui, irmã, pois com pretensão nada ganho;
Jogas pro alto sabedoria que não apanho

GALATEIA
Não te preocupes por agora, que essa é a natureza de luas crescentes
Vejo claramente em tuas pupilas a sombra de ideias inocentes
Mas ouça agora, quando digo, que as trombetas que me acordam

São como ecos das nossas; incorpóreas e verdadeiras
Mas soam de outras bocas, de outro azul planeta

Curiosas coisas borbulham entre as cadentes luas e estrelas
Cujas incandescentes raízes às mantém em terra negra
Histórias de bosques e cálices de desejos; histórias do barro e do céu; mitos nossos e deles

LARISSA
Viras os olhos para as fadas do barro?

GALATEIA
E as de ar que entre estas caminham.

chá e rendaWhere stories live. Discover now