No fim do dia deixamos a caverna para ver o sol

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Isso foi meu projeto de história sobre estudar em tempos de covid, fiz bem apressadamente, mas acabei gostando um tanto.

I.

Torna-se clichê e por vezes soa desonesto
Recorrer aos fossilizados cérebros d'outrora
Quando de novo alcança-nos tempo funesto
Que tinge lúrido os dedos róseos d'Aurora

Dizem:
Não há em ti um único pensamento fresco
Que recheie-nos de ternura?
Que nos prive desse pesadelo dantesco
Sem evocar a passada fartura?

De fato parece-me a função de um bardo
Arrancar um verso novo de seu intestino
Sempre que nos for dado um novo fardo
Pelo cíclico e terrível Destino

E no entanto arranco meu próprio coração
De novo e de novo para poder rimar,
O examino à luz, o peso em minha mão
E não acho que preste para confortar...

Há na flor silvestre uma selvagem beleza
Que chamaram O Sublime:
A encantada amplidão da natureza
Quando é tão bela que nos oprime

E nos tempos de abundância, da áurea placidez
Sonho com maravilhas que afogam os sentidos,
Que me envenenem os sonhos a insensatez
Pungente e flamejante de corações-partidos

O coração que sofre exige fáceis belezas
Lembretes de vitórias do passado
De como até os heróis por natureza
Foram, também, uma vez derrotados

II.

Diga que não nascemos na caverna, como propôs Platão, e sim por turbulências da vida hodierna nela fomos colocados: assim tiramos o fator equalizador do nascimento nublado por mantos do escuro e fazemos com que todos lembremos do deleite da luz e ansiemos por uma lanterna além do tímido fogo que nos provoca com fantasmas d'uma beleza que agora nos negligencia...

Diga: por que você anseia pelo sol quando a fogueira é suficientemente quente e luminosa?
Diga: quando o escuro é confortável, por que você continua esticando sua mão na direção da luz?
Diga: o que é essa rosa carmim em flor que habita seu peito e exige mais mais mais mesmo quando o menos é mais confortável?

Não é com o corpo que deixamos a caverna. Não é física a encantada lanterna que nos eleva acima do temor. Não é tangível o sol que buscamos na entrada de pedra. O diminuto astro da fogueira é alimentado por brasas de falaciosa fábula, que nos suspira sussurros ofídios de segurança e promessas perigosas de liberdade.

Mesmo quando se abrir o breu rochoso e o sol se exibir, deixaremos parte de nós para trás. Por mais sublime que seja, é violenta nossa adorada e desejada luz do sol. E haverá aquele que preferirá os falsos espectros da caverna, com seus meigos contornos e predatórias ideias.

III.

O que nos resta, abandonados ao breu
Que apodrece tudo que é simples e santo
Além do mito-memória do pretérito Eu
Que persiste como se soubesse que nos serve de acalanto?

Há nas sombras uma claridade aguda
Que nos faz criaturas de gratidão
Que nos lembra, enjaulados na gruta
De reconsiderar o privilégio da vastidão

Nós sonharemos ad eternum com o sol
E ignoraremos o sirênico sibilar
Da ilusória serpente com olhos de farol
E quando tudo isso acabar,
Deixaremos a caverna para ver o pôr-do-sol

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