Uma Carta do Príncipe de Além-Colina I

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Meu trevo,

Perdoe a breve demora!

Escrevi-lhe uma carta assim que deixei os calores amenos de teus braços. Aquela noite, tão escura e tão fresca, cobriu minha partida com deleite, mesmo que a vista de tua sombra desaparecendo entre as dobras da noite fosse fonte de melancolia. E essa junção agridoce de emoções, devo dizer-lhe que ali descobri a fórmula da poesia.

Escrevi uma carta linda. Verdadeiramente linda. E não entenda errado o que digo; não estou atribuindo a mim mérito de grande escritor, mas a ti o papel de suprema musa. Deixar o veranico do teu corpo e mergulhar nas águas da viagem e do futuro, isso colocou seus contornos claros contra um fundo de breu noturno, fez de ti ainda mais real em minha memória. Foi como se o tempo que passei contigo tivesse sido um sonho que pude compreender apenas depois de acordar. E devo dizer-lhe, o acordar foi doloroso, mas em sua dor, magnífico.

A carta em questão, não posso mandar, por mais que você mereça minhas mais sacarinas e rebuscadas palavras. A verdade é que aquelas declarações não nos cabem mais. Teria sido certo mandá-la à época, mas não agora, quando já cheguei em casa e lentamente adentro os sapatos de príncipe. Procurei enviá-la assim que a tinta secou, mas uma séria questão entre as cortes e as aves se criou inesperadamente, e nossas habilidade de contato com o mundo humano dependem de forma quase perigosa nelas. Ensinei-o a falar comigo pelo fogo, pela água e pela sombra, mas essa forma é uma rua de mão única. Já que não és feito dessas coisas, não posso responder. E, infelizmente, durante a viagem — tais movimentações exigem emancipação da face física do existir — também não pude receber nada.

Sobre a viagem: foi agradável e rápida. Confio que não tenha sido impaciente durante esse tempo — a paciência é uma das muitas virtude que adornam teu espírito. Nunca é fácil atravessar a colina, mas enquanto voávamos e nadávamos e cortávamos o corpo da realidade entre névoa e nuvens e o vácuo, carregava comigo a visão de teus olhos castanhos sob a luz da meia noite, carregava comigo a memória de tua franja colada contra a testa ao emergir da piscina, carregava em minhas costelas o espectro do calor da tua mão, e essas coisas deram a tudo um aspecto tão romântico e denso que penso que poderia ter continuado a viagem pela eternidade.

A situação das aves não se resolveu ainda, e o futuro permanece incerto. Porém estou sendo um tanto rebelde e burlando algumas restrições para conseguir enviar pelo menos essa. Deveria ser uma carta de gratidão, por tudo que fez por mim, incutiu em mim, me ensinou. Mas, profundamente, é uma carta de capricho do coração. É uma carta de paixão.

Não parei de queimar desde que o deixei. Queimo com memória. Sombras de fumaça em meus olhos, fantasmas morando na ponta dos meus dedos. Sonho contigo. Vejo as mechas do seu cabelo entre folhas de verão. Sinto o cheiro do seu perfume, tão humano, em meios aos cheiros feéricos da corte. Esta carta é uma confissão tardia. Te amo. Te amo como príncipe da fadas, distante e admirado, Selene encarando seu Endimião, mas também te amo como o garoto de roupas estranhas que você encontrou no matagal. Te amo com a inocência d'uma estrela cadente que se encontra entre humanos, te amo com o ardor impudico das quimeras d'um menino colegial, te amo com a perfeição da própria quimera, te amo com a ternura de um namorico das férias, te amo com a devoção morna de esposo. Te amo em todas as fatias de existência que conheci e amei conhecer em minha estadia contigo. Te amo principalmente, e acima de tudo, como o príncipe-menino que deitava na varanda quando o sol se punha e lhe encarava as feições, quase anestesiado, até que me perguntasses "o que está olhando?" e eu respondesse "nada".

Nada! Estava a encarar tudo.

Somos distantes por nascença e agora estamos distantes por obrigação, e sei que inevitavelmente seguirás para além das brumas de meu amor, e logo se dissipará meu fantasma dos cantos de sua casa. Sei que deve seguir humano, efêmero, sei que tens deveres enfadonhos e um coração mais volúvel do que a relíquia que respira em meu peito. Mas espero que algumas de minhas pegadas ainda restem eternas nas tábuas da varanda, e algo do seus lábios lembre dos meus. Espero tão densamente, do fundo da jóia que me habita o intestino, que nunca se esqueça que eu fui real, que este verão não foi fábula, que me amor sempre será seu, tangível, concreto, verdadeiro e eterno.

Obrigada por tudo, meu trevo.

Apaixonadamente,

Seu lírio.

chá e rendaWhere stories live. Discover now