a pureza

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me perguntam, constantemente, por que quase só uso branco. a resposta fácil vive na ponta da língua: me faz sentir bem. sempre gostei de tons claros, e por muito tempo vivi imersa em tons pastéis, um mundo verde primavera, de tule rosa-bebê e seda azul-clara. não consigo ver quando foi que o mundo se transformou em uma magnum opus nos tons da manhã, mas ele o fez, e hoje nado em um dia-a-dia dourado, castanho, creme e branco, borrado e etéreo, por vezes salpicado com tons suaves daqueles saudosos verdes, rosas e azuis.

mas vê, existe para essa pergunta também uma resposta longa, tão longa, tão íntima e tão pura. ah, pura, essa palavra que surge aparentemente inócua para reger esse texto. a pureza. a verdade. a humanidade. a nudez. o pecado. a cor branca.

não se perca com minha associações! algumas tão típicas, outras absurdas. não se engana e adivinhe o que quero dizer, porque tanto mal pode surgir dessa escolha! quando falo de pureza desafio o conceito rígido, tradicional, pesando com moralidade, etiqueta, modéstias, a pureza cristã das leis e reprimenda, da mulher perfeita e calada. essa suposta pureza é para todos os efeitos uma corrupção e uma mentira, um véu fino e tolo e nem perto da pureza sobre a qual falo. a pureza da cor branca. e não assuma também, que venho daquele lugar de onde tantas opiniões parecem vir; o colonialismo, eurocentrismo, racismo, que vê o corpo branco como o corpo limpo, divino, puro. essa também é uma visão absurda da pureza, uma visão manchada e propriamente impura, ignorante em cada centímetro de sua existência. não falo da cor de pele de povos, não falo de tons ou etnias mas do branco, o branco da areia, o branco da luz, o branco da costa. o branco da porcelana, das pérolas, dos vestidos de verão. porque o branco? porque o branco para representar a pureza? que misteriosa pureza é essa a que me refiro, a pureza que descrevo e rege minha vida, que define minha poesia?

vê se me entendes quando te descrevo meu paraíso, meu Elísio, absolutamente puro, a definição da pureza. o paraíso é definido por prazer; a realização de desejos. no paraíso se veste a pele nua e desconhece o pudor, no paraíso se corre sob o sol, se beija sob a lua, nada em águas limpas, se chora ao som de música e dança com desconhecidos, se vomita o coração em prosa e cospe a alma em poesia, se come tanto, todas as melhores coisas do mundo se come, quando quer, como se quer, se bebe todas as bebidas mais deliciosas, se diverte com todas as drogas e permite a insana e euforia dionisíaca tomar seu corpo. no paraíso se fala alto e grita, canta suave e murmura, briga com amigos e inimigos, transa com amantes, com amores e desconhecidos, transa quando quer, como quer, com quem quer, com si mesmo, até. transa com ninguém também, se em sua lista de desejos este não há. no paraíso se passa os dias em silêncio, perde tempo em coisas sem sentido, no paraíso se comete todos os pecados; se deixa levar pela gula, se permite sentir a raiva e a inveja, se mergulha na luxúria, se vive no meio de árvores e sob um céu nu, se estende sob o sol e toma banho de chuva, se rola na grama e ri, um riso como se tilintasse, despreocupado, improdutivo. se lê os livros certos, os errados, se dança valsa perfeita e rodopia os passos errados. no paraíso se veste a alma sobre os ombros e o coração na cabeça para todos verem e ninguém julgar.

no paraíso somos perfeitos. absolutamente imperfeitos, repletos de falhas, sempre falhando. sempre verdadeiros a alma humana, essa coisa suave e intensa, inconstante. mas no paraíso beijamos nossas falhas na testa, um beijo materno e brando, e as agradecemos pela presença. assim fazemos de nós mesmos seres perfeitos.

entende? entende como isso é tudo pureza? a pureza verdadeira? e é por isso que o branco, a cor que reflete toda a luz, seria para mim a cor da pureza. ela não esconde nada, não toma nada, não veste nada. ela reflete tudo para todos verem, brilha para cegar, um brilho tão belo e suave como um sonho, e tão insano quanto. a pureza é isso: a pura verdade. ela é amendontradora e perfeita, desequilibrada e harmoniosa, uma visão tanto apolínea quanto dionisíaca. é a pureza sobre a qual emily dickinson falava quando disse "tell all the truth but tell it slant", quando afirmou que a verdade é um relâmpago que cega, brilhante demais para nosso "enfermo prazer". é a pureza que os gregos conheceram e que os cristões negaram sob a guisa de pecado. a pureza é pecado e virtude, os pecados tornados virtudes, tudo se tornado virtude, porque a pureza é a verdadeira liberdade, e o ser humano livre não nega à própria alma aquilo que ela deseja. a liberdade é uma mãe generosa que lhe dá tudo que seus instintos exigem, que não produz consequências nem proibições.

a pureza; a verdade, a liberdade e a beleza. meus valores, minhas virtudes, minha beleza. elas que pintam minhas palavras e montam minha filosofia, que fazem de mim algo parecido com meu sonho. visto branco porque é o mais próximo dela, é o mais próximo do ser angelical, incandescente, suave e fluido, incompreensível e perfeito que eu desejo ser, que anseio por ser. o branco me veste com o paraíso, e se visto branco quem sabe posso também viver nesse mundo em que nada se julga e tudo se ama, onde durmo sob o sol e sobre a grama, onde beijo sem medo e nado entre nuvens, onde a pureza reina.

chá e rendaWhere stories live. Discover now