A Fuga

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A noite chegava.

Minha solidão parecia ainda mais terrível. Angustiado e triste, eu passara o dia em meu quarto, planejando tudo com cuidado e me preparando.

Indignava-me com o que acontecera a Karl e Elise. Criados haviam me avisado de que ela seria mandada para um convento, e isso finalmente me fez tomar uma decisão.

Vestira roupas de caçada, feitas de couro grosso e resistente, e a capa forrada de pele. Presas ao cinto, eu tinha minha espada e uma adaga. Colocara em uma sacola mudas de camisa, roupas de baixo e, embrulhados em um pano, pão e um pedaço de queijo, sobras das refeições do dia.

Também pretendera colocar ali dentro um ou dois livros, mas logo descobrira que o peso deles atrapalharia os meus planos. Porque eu pretendia fugir.

Mas não totalmente desguarnecido!

Antes, planejava seguir para a torre onde meu pai guardava suas posses. De vez em quando, eu costumava me esgueirar até lá.

Os soldados que a guardavam haviam sido todos subornados por mim ao longo dos meses, em minhas visitas anteriores. Ficavam sempre com uma ou duas moedas das que eu surrupiava de baús cheios.

Eu nunca tirava muito para que ninguém percebesse. Havia sido desta maneira que juntara o dinheiro dado à família de Karl. O dinheiro que seria usado em minha fuga. Há dois anos eu a ensaiava em minha mente.

No entanto, desta vez eu não precisava me contentar com pouco, pois pretendia nunca mais voltar. Pegaria o que conseguisse carregar e sumiria no mundo.

Este era o meu plano. Finalmente, a indignação que sentia me dera coragem para realizá-lo.

Olhei em volta, despedindo-me do conforto de meus aposentos. Erguendo um queixo decido, saí porta afora.

 Naquele horário, a maioria dos moradores estavam fazendo a refeição de inicio da noite. Ninguém me notaria e, aqueles que o fizessem, apenas me ignorariam como de costume. É apenas Gillian..., pensariam, sem parar para me perguntar porque eu estava vestido para uma caçada no meio da noite. Talvez estranhassem se fosse meu irmão, mas jamais perderiam tempo comigo. 

Havia algumas vantagens em não ser o herdeiro... A maior delas era passar desapercebido quando se estava aprontando alguma coisa errada.

Cruzei corredores vazios e escuros rumo à torre. Minha melancolia da tarde desaparecera; meu coração batia alegre, animado com a aventura.

Entretanto, subitamente, lembrei-me de Elise e de que seria levada ao convento. A culpa retardou os meus passos e me fez parar em uma bifurcação.

 No corredor à direita, eu alcançaria uma escada lateral, subiria  para a torre e logo estaria longe dali. À esquerda, eu seguiria até os aposentos das damas de companhia e poderia convidá-la para escapar comigo.

Duvidava que ela aceitasse a oferta. Na verdade, nem mesmo gostaria que ela dissesse sim. O amor que sentira por ela em nossos encontros não era forte o suficiente para nos manter juntos. Contudo, eu me sentia obrigado. Havia lido muitos romances onde um cavaleiro deveria resgatar damas em perigo.

Deixando escapar um suspiro, caminhei para a ala das mulheres. O falecido esposo de Elise havia sido um nobre importante, então minha madrasta a hospedara em um quarto individual. Confesso já conhecia bem o caminho até lá...

Alguns pajens e soldados cruzaram por meu caminho. Eu sorria e, como esperado, eles apenas ignoravam-me e deixavam-me passar.

 Logo, já estava diante da porta.

Ergui a mão para bater. De repente, escutei uma pancada, gemidos abafados vindos de dentro, e depois mais nada. Franzi a testa com a mão parada no ar. Esperei mais uns instante, imaginando que me enganara.

 Um grito mais alto rompeu o silêncio.

Sem esperar mais, abri a porta com um chute. Invadi o quarto, já tirando a adaga da cintura e jogando o saco de viagem para o lado.

Parei, boquiaberto com a visão.

A cama de Elise ficava encostada na parede ao fundo. Ela inclinava-se de joelhos, com a barriga e os cotovelos apoiados na beira. Tinha um lado do rosto vermelho, como se tivesse levado uma pancada. Os cabelos estavam soltos, despenteados. Seu vestido se rasgara, expondo os seios.

Ela chorava e se contorcia. E meu irmão... Meu irmão!, rosnei como um animal e torci os lábios, furioso. Não podia acreditar no que via. Francis estava por cima dela e tentava violentá-la.

Crispando a mão no punho da adaga, eu corri para ele. Agarrando o colarinho de sua túnica, arrastei-o para longe com um urro de cólera.

Ele caiu de joelhos, mas rapidamente ergueu-se, ajeitando a túnica. Enquanto isso, Elise se envolvia em uma manta, soluçando alto com lágrimas abundantes escorrendo pelo rosto. Em sua testa, havia outra marca avermelhada.

Encarei Francis com um olhar de acusação e, sem pensar, levantei a adaga e espetei no peito dele, ameaçando-o.

— O que é isso, Gillian? — Ele me devolveu um olhar e um sorriso de sarcasmo. — Elise passou a noite passada com você. Todos sabem disto! Qual é o problema de eu querer experimentá-la também? Amanhã ela não estará mais aqui.

— Como ousa atacar uma mulher? — eu rosnei a pergunta e apertei um pouco mais a ponta da adaga, empurrando-o para o meio do quarto e para longe de Elise.

Francis riu alto.

— Karl não esta mais aqui... Se não, eu poderia tê-lo procurado. Os soldados me contaram que ele também estava em seu quarto.

Eu trinquei os dentes. A expressão de Francis era divertida. Ele nem mesmo tentava fingir o contrário.

Fechei o rosto. Meu sangue fervia de ódio. Por um instante, pensei em matá-lo de verdade.

Mas foi então que atraídos pela confusão, soldados entraram.

Calculo o que devem ter visto. Eu ameaçando o herdeiro com a lâmina; a jovem seminua sobre a cama. A conclusão era óbvia.

 Francis pensou o mesmo. Dando um passo atrás e abrigando-se entre os soldados, disse:

— Gillian surpreendeu-me com a dama. Perdeu a cabeça e tentou nos matar.

Abaixei a arma no mesmo momento. Meu peito afundou e meus ombros se encolheram. Deixei escapar o ar com força, sentindo-me derrotado. Os olhos dos soldados já condenavam-me.

Para piorar, minha madrasta chegou. 

Chloe de Cluny. 

Alta, esguia, olhos estreitos de cobra, vestida sempre de cores escuras. Na minha cabeça, ela era tão má quanto as bruxas dos contos de fada.

Estremeci, apavorado.  Eu estava morto...


Nota da Anne:  Pobre Gillian... E agoraaaa?

GillianOnde histórias criam vida. Descubra agora