Máscaras

39 12 5
                                    

Todos nós usamos máscaras a maior parte do tempo. Temos medo de nos revelar, porque imaginamos que os outros ficarão horrorizados ao descobrirem quem somos de verdade.

Naquela noite na torre, eu decidira jogar minha máscara fora. É claro que isso não é totalmente possível. A maior parte de nossa alma está oculta até de nós mesmos.

Mas ao menos, eu tentava. E descobria, surpreso, que começava a atrair pessoas para me ajudar.

Thomas era uma delas.

Eu havia lhe contado sobre Thiago, e ele resolveu interceder. Ofereceu-se para saldar a dívida da família dele com meu pai, afirmando que eles poderiam devolver-lhe como pudessem.

Assim Thiago ficaria livre para decidir se continuava em Hastings como escudeiro de meu irmão ou se seguia seu próprio caminho.

Jack, de um jeito surpreendente, concordara com a ideia. Ele e Thomas estavam muito próximos agora. Thomas se inspirara em meu desejo de revelar toda a verdade e fizera o mesmo. Mas este segredo vocês irão saber só mais para frente na história, afinal um bom escritor precisa manter o suspense...

E enquanto treinávamos com arcos e flechas na beira do lago próximo a Locksley, Jack defendia Thiago.

— Você é responsável por Thiago — Jack afirmou.

Em seguida, disparou uma flecha certeira no graveto que havíamos fincado no chão, alguns passos adiante.

— Thiago não é uma donzela em perigo... — eu retruquei, imitando o disparo dele. No entanto, minhas flechas pareciam ter penas tortas e sempre voavam para o lado errado.

— Somos responsáveis por quem nos ama... E por quem amamos.

A insistência dele em ficar do lado de Thiago começava a me irritar. O feitiço virara contra o feiticeiro. Jamais pensara que poderia viver uma situação como aquela.

Jogando o arco no chão com um gesto irritado, eu voltei-me para ele.

— Por que está tão ansioso em encontrá-lo? — esbravejei. — Não tem ciúmes?

Era isso o que me incomodava. A boa vontade de Jack queria dizer que ele não se importava de verdade comigo. Pelo contrário, desejava se livrar de mim o mais rápido possível, e por isso queria me devolver aos braços de Thiago.

Jack parecia muito calmo. Lentamente, colocou mais uma flecha no arco, ergueu-o para o alto e mirou por um bom tempo antes de disparar.

Outro tiro certeiro.

Só então, ele se virou e me encarou com uma expressão séria.

— Quem ama de verdade deixa o outro livre. Quando nós dois estivermos ao seu lado você será obrigado a se decidir... — disse.

— Decidir? — Eu franzi as sobrancelhas, sem entender onde ele queria chegar.

— Sim! A quem você ama realmente. Ou talvez... Não ame a nenhum de nós dois.

Mas que ideia absurda! Estreitei os olhos e medi Jack com mal humor. No entanto, os olhos dele continuavam como de costume, sorridentes e claros, sem nenhum vestígio de ironia ou de que estivesse brincando comigo.

— Bem... Amanhã mesmo Thomas irá comigo para Hastings — eu o lembrei do combinado. — Meu pai ficará uma fera porque ainda não parti ao encontro do rei Henrique, mas não tenho medo de enfrentá-lo. E então, voltaremos com Thiago.

— Ótimo — Jack disse em tom seco, virando-se de novo para o alvo.

— Ótimo! — eu repeti com um grunhido e cruzei os braços. — Assim, poderemos fazer um trio quando Thiago estiver aqui! — Dizia aquilo apenas para provocá-lo. Jack tivera uma criação rígida no mosteiro, e eu tinha certeza de que ideias ousadas como essa o deixariam terrivelmente embaraçado.

— Será como Deus quiser — ele respondeu em tom ainda mais calmo, sereno como a superfície do lago ao nosso lado.

Malditos monges... , resmunguei. Certamente alimentavam as crianças com chá de papoulas no mosteiro, para que elas se tornassem pessoas tranquilas como anjos.

Aborrecido e enciumado, eu teria continuado a provocar Jack por mais tempo. Entretanto, subitamente fomos interrompidos pelo barulho de cavalos que se aproximavam.

Eram Thomas e o conde William.

Os dois pularam dos cavalos. Ambos tinham expressões preocupadas.

Thomas chegou perto e me entregou um pergaminho. Eu o abri e o estudei por um instante. Era uma carta de Nottingham, escrita por Elizabeth, e que trazia notícias de Robert.

— Gillian — Thomas começou — sei que combinamos de ir até Hastings amanhã. Mas essa carta chegou agora pouco, através de um mensageiro de Nottingham.

Eu li o conteúdo rapidamente, e depois entreguei a carta a Jack, parado ao meu lado.

— Gostaria que vocês fossem procurar Robert... — o conde William dirigiu-se a mim e a Jack. — Vejam se ele está bem. E depois, podem voltar para cá.

— E quem sabe poderíamos trazê-lo conosco? — Jack também terminara a leitura da carta e já havia entendido tudo.

Há meses, Robert e Thomas haviam discutido de um jeito terrível. Thomas expulsara o filho de Locksley e agora não queria dar o braço a torcer e ir pessoalmente até ele para chamá-lo de volta.

— Estou disposto a aceitá-lo aqui. — Thomas coçava a nuca e andava de um lado para o outro, visivelmente aflito. — Antes que ele se envolva em encrencas piores! Sir Lacran e Gawain, sobrinho dele, são parentes do rei. E há boatos que cercam os dois, sobre torturas e crueldades horríveis!

A verdade é que o idiota do Robert estava mesmo encrencado. Era isso que Elizabeth contara na carta.

Meses atrás, o arrogante Locksley saíra da casa dela para ir morar na floresta com John, o arqueiro que vencera o torneio de Nottingham.

Bem romântico..., uma voz irônica dissera para mim mesmo ao ler isso na carta.

No entanto, na floresta, ao invés de ficar quieto e se apaixonar pelo arqueiro, Robert conhecera uma curandeira da região. E ela fora acusada de bruxaria por Sir Lacran.

Tal acusação terminara em um julgamento, no qual Robert desafiara o cavaleiro para um duelo em defesa da curandeira. Um ordálio, o julgamento de Deus. Não quero entrar em detalhes de como isso tinha acabado...

Por fim, Elizabeth contava que Robert agora estava ferido e recuperava-se na cabana de John. E também nos alertava de que Sir Lacran e Gawain haviam jurado vingança contra ele.

— Com certeza Thiago pode esperar mais um pouco... Uma semana não fará diferença! — apressei-me a concordar. Faria qualquer coisa que Thomas me pedisse, pois lhe devia minha vida.

— Iremos nos aprontar e partiremos hoje mesmo — Jack afirmou em tom decidido.

Nós dois nos entreolhamos, esquecidos de qualquer desavença.

— Somos dois cavaleiros... Iremos resgatar Robert, a donzela em apuros — não pude deixar passar o comentário sarcástico.

Esse era eu, sem a máscara.

GillianWhere stories live. Discover now