Capítulo 18 - Desafeto

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Merida*

Metros distante de mim, Mor'du vira para trás por um momento, soltando um rugido gutural, tanto para amansar o orgulho ferido por quase ter sido derrotado por uma garota, quanto para me avisar de que nossa batalha ainda não acabou. Fico parada, ofegante, minhas mãos tremem de adrenalina, o cabelo vermelho colado no pescoço empapado pelo suor que faz arder os arranhões enquanto vejo o urso negro monstruoso desaparecer para dentro da mata.

Minha espada cai no tapete de folhas secas no chão.

Giro nos calcanhares e corro como uma bala até onde deixei Soluço, me ajoelhando ao seu lado, apavorada.

- Por favor, por favor - choramingo retorcendo sua camiseta em farrapos -, não esteja morto.

Mas ele já poderia sim, muito bem, estar morto. A pele pálida, branca como giz, suando frio; os lábios secos, azuis. Eu nem conseguia reparar seus ombros subindo e descendo com a respiração fraca.

Seguro o tranco, soltando o ar dos pulmões e pressionando meu ouvido em seu peito, me concentrando para ouvir os suaves ruídos surdos do bater descompassado de seu coração.

- Aguenta firme aí - digo, talvez mais para mim mesma, minhas mãos fazem uma dança atrapalhada, sem saber exatamente no que trabalhar até que...

Oh, deuses, penso enjoada ao olhar para baixo, minha vista escurece. Como eu não reparei antes que a perna dele...

Logo após o joelho, rompendo a pele dilacerada que expõe nervos e tendões rasgados brilhando com sangue, a extremidade quebrada do osso desponta para fora, chamando atenção. Ergo a cabeça, meio tonta, e então meus olhos batem direto na ponta de um sapato, vários metros de onde estamos. O outro par do sapato que Soluço usa agora, junto com o resto do membro mutilado. Meus deuses, que coisa horrível!, meu estômago se contrai furiosamente.

Com o coração apertado, olho aflita para o rosto pálido do garoto, tirando seus cabelos da testa molhada de suor. Ah, Soluço, seu idiota... O que deu em você?! Por que, raios, você se atirou contra aquele monstro?, Pelo menos, inconsciente, ele não pode sentir tanta dor. E graças ao choque hemorrágico, o organismo dele se encarregou em desviar o fluxo sanguíneo para os órgãos vitais, de forma que sangre pouco pela perna, mas o suficiente para me deixar nauseada com o cheiro pútrido e metálico do sangue impregnado no ar.

E tenho que ser rápida. O fluxo sanguíneo está voltando cada vez com mais força e se eu não fizer alguma coisa agora, ele vai sangrar até a morte em poucos minutos. Sei que torniquetes são perigosos, mas não tenho outra opção. Tiro meu casaco prateado e rasgo uma tira de vez, amarando com um nó bem forte dois dedos abaixo do joelho.

Viro o rosto, fechando os olhos quando o embrulho no estômago fica forte demais para suportar, devo estar esverdeada.

- Calma, Meri, a pior parte já passou - falo comigo mesma, respirando fundo para passar a ânsia, evitando olhar para o membro amputado. - Agora precisa procurar ajuda.

Mas ajuda aonde?

Rapunzel, o rosto da garota vem direto na cabeça e, sem escolha, resolvo voltar para a zona de conflito, rezando para que a batalha tenha acabado e que a loira possa fazer alguma coisa.

Apavorada demais para ser cuidadosa, coloco os braços do garoto por cima do meu ombro, desajeitada, passando suas pernas - ou pelo menos o que sobrou delas - por entre meus braços, deixando um rosnado baixo me escapar da garganta ao tentar nos erguer.

- Quando foi que você ficou tão pesado? - Pergunto rangendo os dentes, suportando seu peso nas minhas costas e me esforçando para conseguir dar mais um passo à frente.

Seja forte, Merida, me incentivo, evitando que ele despenque para trás, meus joelhos estão quase cedendo. Falta tão pouco...

Não sei de onde tiro forças, mas assim que nos arrasto para fora da floresta e avisto um aglomerado de semideuses que surgiram do nada, solto um grito estridente que faz todos virarem a cabeça em minha direção.

- Socorro! - Berro de novo com minha voz esganiçada, a garganta seca.

Reconheço alguns filhos de Apolo correndo em minha direção, como uma manada de cirurgiões e curandeiros. Meus olhos ardem, prestes a irromper em lágrimas de alívio quando eles se apressam para segurar Soluço em meu lugar.

- Minhas costas agradecem - murmuro a ninguém em especial, massageando o ombro e, sem aguentar mais, caio de joelhos no chão, exausta.

- Ah, meus deuses, Merida! - Rapunzel aparece de repente e se abaixa, erguendo meu queixo. - Você está bem?

- Vou ficar - digo -, agora você tem que ir ajudá-lo.

- Mas...

- Vai logo, Zel.

Ela me encara com aqueles olhos verdes enormes e expressivos, apertando os lábios e assentindo com a cabeça uma vez, antes de levantar e sair.

Olho ao redor por um momento, surpresa com a rapidez que os semideuses montaram um acampamento temporário, usando lonas que provavelmente saíram de dentro do cinto de ferramentas de Leo. Logicamente, ninguém quis voltar a entrar no castelo. E pelo visto, estamos rodeados por filhos de Atena, já que a arquitetura parece bem confiável.

- Você é durona, Caçadora - o Guardião, Jack Frost, aparece do nada.

- Me conta uma novidade.

Ele solta uma gargalhada musical e estreita os olhos pra mim, intrigado, apoiando o peso do corpo no cajado.

- Você salvou a vida dele.

- Esperava que eu deixasse ele sangrar até morrer?

- Pensei que vocês, Caçadoras, odiassem os homens.

- Só queremos que vocês saibam qual é o lugar de vocês. - Rebato.

- Eu não estava me referindo a isso.

As palavras me escapam.

- O-o que você quer dizer? - Desconfio.

- Esquece. - Ele encolhe os ombros, alcançando algo no bolso do moletom e jogando para mim, que alcanço no ar. - É uma barrinha de ambrósia, pra te dar uma força.

- Valeu... - Franzo o cenho. - Os outros estão bem? Tivemos baixas?

- Fica tranquila, ninguém morreu.

- E a Foice, conseguiram pegar?

Jack engole em seco e sei que algo não vai bem, mas ele não precisa mais responder. Casualmente meus olhos batem nela e por um segundo quase não a reconheço. Elsa empunha uma Foice assombrosa de lâmina escura e reluzente, que de longe ressona uma atmosfera tenebrosa, quase tão tenebrosa quanto a própria Elsa. Os cabelos da semideusa mal se prendem na trança rebelde, cortes feios marcam seus braços e a expressão em seu rosto é ainda mais assustadora - dura e fria como uma pedra de gelo. Aposto que em ação ela é ainda mais imbatível do que aparenta ser agora, e isso porque ela tem pouca experiência em batalhas e nem deve fazer ideia do quanto coloca medo nas pessoas.

De repente, entendo o porquê da profecia de Rachel, sobre a parte em que a garota faz um poderoso deus do céu cair e o porquê do Olimpo ficar tão preocupado com uma adolescente de dezesseis anos.

Elsa poderia muito bem ser o crepúsculo dos deuses, o Tânatos do Monte Olimpo.

Um calafrio balança meu corpo e sacudo a cabeça, desanuviando a mente. Volto a olhar para a filha de Quione, conversando com Annabeth a alguns metros de onde estou e minha cabeça pesa para o lado, ponderando. Não, Elsa não teria coragem de matar nem sequer uma mosca só por crueldade.

- Alô? - Jack acena, dispersando meus pensamentos. - Você me ouviu?

- Hã? O quê? - Pergunto como uma panaca e, percebendo isso, levanto do chão. - Quer dizer, a gente precisa de um plano e...

O Guardião ri.

- Eu disse pra você ficar tranquila. E vê se dá pelo menos uma mordidinha na ambrósia, você tá horrível. Descansa um pouco e depois vai atrás do Soluço, o garoto vai querer saber o que aconteceu. Não é todo dia que você acorda fazendo um cosplay permanente do soldadinho de chumbo.

Reviro os olhos.

- Idiota.

Ele se limita a dar um sorrisinho e sair.

Fico onde estou, olhando Frost ir embora, sentindo a desconfiança me abraçar. Ansiosa, dou uma mordida na ambrósia que explode saborosa em minha boca, mas o bem-estar rapidamente se esvai.

"Eu não estava me referindo a isso", as palavras do Guardião bombardeiam minha mente. É como se ele soubesse... Não, definitivamente ele sabe de alguma coisa.

Não seja estúpida, reclamo comigo mesma.

Jack não sabe de nada, nada a respeito do que eu penso sobre Soluço. E mesmo que soubesse, o que está se agitando dentro de mim vai se acalmar, vai passar. Só preciso aguentar a barra. Sei que não sou uma daquelas garotas iludidas do chalé 10, revivendo paixões que nunca foram correspondidas, caçando amores impossíveis, eu sou imune a isso.

Ou pelo menos, tenho que acreditar que sou.

Preciso acreditar desesperadamente que sou imune.





Elsa*

Solstício de InvernoWhere stories live. Discover now