19. meio peixe, meio cúmplice

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WILL

Will era fascinado por sons. Não apenas por música — colecionava discos de vinil desde o final da adolescência —, mas por sons.

Diferentemente das outras pessoas, Will confiava mais na memória auditiva do que na visual, o que não tinha nada a ver com o uso daqueles óculos de lentes absurdamente grossas para enxergar. Cada lugar e pessoa, acreditava ele, possuía um conjunto próprio de sons. Sentado do lado de fora da Bessie, numa cadeira de praia vagabunda, Will fechou os olhos e ouviu.

Havia uma mulher gritando e chorando, recuperando o fôlego com um ronco engasgado de partir o coração. Do outro lado, não muito longe, um homem escarrava numa lata de feijões vazia e abria outra cerveja, não necessariamente nesta ordem. Crianças corriam pelo asfalto quente, risadas asmáticas de uma velha fumante pairavam no ar feito a fumaça de seu cigarro e, acima de tudo isso, alguém ouvia Across The Universe no último volume. Silencioso como um ninja da montanha, Will sorriu, envolvido pela cítara de George Harrison e pela sinfonia de choros, gritos, escarros e risos.

Os sons tornavam tudo único. De olhos fechados, ele pensou nas irmãs. Anna, Daisy e Sarah.

Sempre relacionava os sons de malas fechando-se e aeroportos a Anna, que viajava com os filhos e o marido sempre que podia. À Daisy, irmã do meio, Will associava os sons de abelhas zunindo e de papel celofane que envolvia os arranjos de flores que ela fazia na floricultura em que era proprietária. Já os sons de maquiagens sendo abertas e fechadas e os pings metálicos de cafeteiras sempre o remeteriam à Sarah, jornalista de profissão que sempre estava com uma xícara de café nas mãos, escrevendo artigos para revistas de moda.

Will, o mais novo dos quatro irmãos Greene, ouvia e gostava da ideia de definir sons para as pessoas. Seu pai era as escalas do piano, o som da cadeira sendo arrastada na cozinha. Sua mãe seria o eterno som do forno se abrindo, das risadinhas das escoteiras que se reuniam toda semana na casa deles. Os viajantes da minivan, como um segunda família, também tinham seus próprios sons.

Damian era o tic tic impaciente da caneta, o som dos dedos apertando com força o volante. Lara era o som de sacolas, daquela letra "A" melancólica do italiano. Giorgia, depois daquela noite, era o som dos plásticos das tatuagens das Princesas da Disney, e Alessia, tão diferente da irmã, era as risadinhas bondosas própria da infância. Amy, aos ouvidos dele, era os coturnos desamarrados sobre o piso de concreto dos postos de gasolina, os bottons da mochila surrada batendo no porta-malas da minivan, o som do...

— O que você está fazendo aí?

Ele abriu os olhos, desorientado ao ouvir a voz dela. Todos os sons silenciaram quando Maria chegou, observando-o com o cenho franzido e um sorriso nos lábios.

Existia uma palavra para o fenômeno que sempre ocorria quando ela aparecia, mas Will não conseguia se lembrar da forma, dos sons da bendita palavra. Todas as palavras possuíam a terrível mania de sumir quando ela aparecia.

Sem graça, ele piscou e ajeitou os óculos no rosto, sentindo a cola dos esparadrapos repuxar o nariz e a tinta das tatuagens pinicar a pele de sua bochecha. Maria sentou na cadeira de praia ao seu lado, esticando as pernas e espreguiçando-se. O suspiro dela terminou num gemido rouco, desses que vêm das profundezas da garganta e deixam todo mundo parecido com uma atriz pornô. Will corou com o pensamento, desviando o rosto.

Permaneceu olhando para frente quando percebeu, debaixo da lâmpada incandescente e suja de um dos trailers vizinhos, que Maria tentava enxergar melhor seu rosto. Com um pigarro, ele coçou a nuca, virando a cabeça para o outro lado. Quando uma risada baixa escapou dos lábios de Maria, ele soube que não havia sido rápido o bastante.

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