Trinta e Quatro: Temor

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— Ei! Reconhece esta rua? — questionou Victor e bastou erguer os olhos para que eu perceber onde estávamos.

Claro que eu conhecia aquela rua!

Foi ali onde passei toda a minha infância correndo, andando de bicicleta, brincando com meu pai e irmãos. Tudo ali era tão familiar e mesmo assim eu não conseguia deixar aquela agonia e estranheza de lado. Senti até mesmo minhas vísceras contraírem e logo dei conta que o momento de rever a todos estava chegando.

Mordi meu lábio, deitei a cabeça no encosto do banco e cobri meu rosto.

Por que eu precisava ser tão fraca e inconstante?

— Ah, Jesus, me ajuda! — murmurei aflita.

— Mabel, fala pra sua mãe que ela não vai ganhar o prêmio se começar a surtar novamente — Vic pediu em tom de brincadeira para a bebê agitada na cadeirinha, enquanto já se preparava para estacionar o carro em frente aos portões da minha antiga casa. — Converse comigo, Sarinha.

Na última meia hora, ele se empenhou em me distrair, contando os apuros que já passou enquanto cuidava de seus pacientes. Ok, precisei admitir que, quando contou da vez que um bebêzinho fez xixi em seu jaleco ou do dia em que uma menininha mordeu sua perna com medo de tomar injeção, o espertinho conseguiu me fazer rir. Contudo, apesar de me esforçar, eu não conseguia ficar completamente calma diante da situação em vista.

— Há mesmo um prêmio? Ou você só prometeu isso porque queria me manter ocupada para que eu não pensasse no jantar? — Meus olhos estavam vidrados, observando cada detalhe do lugar de onde um dia saí e eu buscava aliviar a tensão balançando minhas pernas freneticamente. — Minha barriga está doendo.

— Bem, você me pegou, eu realmente queria distrai-la durante esse tempo em troca de uma recompensa que você só receberia caso ficasse calma. — A velocidade foi diminuindo e ele foi parando o carro. — E bem... — Puxou o freio de mão e, após se soltar do cinto, alcançou uma caixa escondida em baixo do banco do passageiro. — Aqui está, você conseguiu.

Sem entender muito bem, eu segurei e analisei o pacote com embrulho cor de rosa.

— O que é isso? — perguntei confusa e impressionada, pois Victor realmente se esforçava para me deixar confortável com tudo.

— Abra — incentivou e eu, tomada pela curiosidade, abri tudo sem o menor cuidado.

Quando acabei de rasgar a embalagem colorida e retirei a tampa da caixa, fiquei em choque com o conteúdo ali dentro. Meus olhos se encheram de lágrimas e um nó foi tomando conta de todo o espaço livre da minha garganta.Tratava-se de um porta-retrato lindo com duas fotos muito especiais. A primeira imagem mostrava meus primeiros dias de vida com mamãe e papai me levando pra casa do hospital onde nasci e meus irmãos ao lado deles rindo à beça. Já a segunda eu aparecia novamente, mas dessa vez segurando e divertindo Mabel com minhas brincadeiras.

— Seu pai deixou eu pegar a primeira foto e eu tirei a segunda ontem sem você perceber — informou me observando com cautela. — Pensei que mostrando essas boas lembranças, você perceberia o quanto é amada pela sua família. Gostou?

Soltei o ar devagar e toquei a imagem, sentindo-me completamente emocionada.

— Eu amei! Amei! Amei muito! — Sorri empolgada e enxuguei meu rosto usando as mangas do casaco. — Você é incrível, Victor, obrigada!

— Viu só? Valeu a pena esperar — Ele piscou com certo charme. — A outra surpresa você só ganhará após o jantar, estamos combinados?

Concordei e voltei a encarar aquele precioso presente em minhas mãos. Senti pulsar no peito a saudade dos anos anteriores, quando minhas preocupações eram apenas decidir a cor dos vestidos das bonecas ou chantagear meus irmãos em troca de doces. Tudo, no entanto, mudou tão drasticamente. Eu mesma já havia perdido as contas das incontáveis transformações pelas quais passei na minha vida, principalmente nos anos em  que estive fora de casa. De um momento para o outro tornei-me adulta, ganhei independência e ao mesmo tempo virei mãe e responsável por alguém completamente carente dos meus cuidados. Nada mais voltaria a ser como antes e mesmo assim, lá estava eu, voltando ao ponto inicial.

Ensina-me amarWhere stories live. Discover now