Capítulo 1 - Uma garota e seu irmão

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Eram cerca de três da tarde quando Loenna sentou-se na beira do lago, com uma bolsinha de moedas na mão esquerda e um sanduíche de presunto na direita, aproveitando o frescor da tarde e o aroma de terra molhada que emanava dos mananciais. Vestia uma blusa vermelha de pano rasgada que lhe cobria somente o necessário e uma saia que originalmente era branca, mas com o tempo fora tornando-se marrom como a terra.

Nas águas límpidas do riacho, era possível focalizar seu reflexo. Seus lábios estavam retorcidos e amargos e as feições sempre carrancudas, fruto do destino que a vida lhe reservara, e as características de sempre ainda estavam ali: Cabelos curtos, alaranjados e ondulados; olhos da tonalidade do âmbar e pele pálida como o dia. Seu corpo era grande e rígido, quase que bruto. Os ombros estavam marcados de pequenos machucados vermelhas e não pareciam capazes de relaxar, como se estivessem sempre em posição de combate. Loenna tentou sorrir para as águas espelhadas, mas achou que aquele sorriso não combinou com suas feições e voltou a assumir a postura carrancuda. Não havia nascido para ser feliz, julgava.

À distância da margem do rio, estava ele. E talvez ele sim, tivesse nascido para ser feliz. Loenna emitiu o mais próximo de um sorriso que conseguia soltar e fez movimentos circulares com os polegares em torno tanto do sanduíche quanto da bolsa de moedas.

Quentin era seu nome. Fazia cerca de três meses que ela não o via e talvez fosse a única pessoa com quem ela ainda se importasse. Era muito parecido com ela na aparência, possuía um espesso cabelo arruivado que enrolava-se em vários cachos, pele branca, olhos alaranjados e uma barba discreta. Não tinha o corpo machucado, era muito mais magro e visivelmente mais fraco, mas as diferenças acentuavam-se de verdade na personalidade e modo de agir.

Vestia um chapéu multicolorido com estrelas nas pontas, havia pintado a cara de branco por completo e prendia na ponta do nariz uma bola vermelha. Usava também roupas extravagantes e calçava sapatos ao contrário, tornando assim uma caricatura extremamente desajeitada e chamativa de si mesmo.

E Quentin tinha um talento na tural para o humor; ao seu redor formava uma platéia de crianças que riam e se divertiam com suas piadas, suas trapalhadas e suas acrobacias. Ria, sorria, pulava, fingia-se de idiota, brincava com o público e animava assim a tarde daquelas crianças; A maioria delas pareciam garotos de rua, tão sujos e maltrapilhos quanto a própria Loenna, mas alguns estavam extremamente bem vestidos e arrumados; Certamente crias de famílias nobres.

Dado momento, Quentin virou para o público e encerrou suas apresentações:

E é isso, galerinha! Muito obrigado por terem vindo fazer companhia ao fivelinha! — Curvou-se e tirou o chapéu de suas mãos, no que recebeu vários aplausos acalorados. — Se puderem pedir pro papai, pra mamãe dar uma moedinha para o fivelinha, fivelinha fica muuuuito feliz! — E apontou para o chapéu de pano que segurava.

As crianças que talvez pudessem contribuir com alguma coisa correram em direção aos seus pais e apontaram para o rapaz fantasiado à frente. A maioria dos adultos apenas negava e seguia em frente, olhava feio ou ria e dava tapinhas na cabeça da criança, como se ignorando-as. Não tardou até que Quentin, ou Fivelinha, percebesse que precisaria correr atrás dos adultos ele mesmo, mas os resultados não foram muito satisfatórios. A grande maioria ignorava e fingia que estava tratando com um grande saco de adubo e não com um ser humano, e alguns chegavam até a serem mais hostis, como o caso de um senhor alto, gordo e visivelmente muito rico, trajando ternos de seda e um chapéu fedora de péssimo gosto:

Ei, amiguinho! — Aproximou-se Quentin. — Dá uma moedinha pra Fivelinha? Fivelinha fica feliz!

A criança puxava o terno do pai e tentava convencê-lo a recompensar Quentin, dizendo que o palhaço era muito legal é engraçado, mas o senhor apenas o olhou criticamente de cima a baixo e ajeitou o monóculo cerca de três vezes antes de entrar na carroça e dizer, com desprezo:

Caos e Sangue | COMPLETOOnde as histórias ganham vida. Descobre agora