Capítulo 5: Vilas humanas.

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Seth, para seu crédito, não pareceu minimamente preocupado e ofendido com meu comentário. Mas não ousou debater minha ameaça. Talvez ele não me achasse perigosa. Com seu belo discurso devia imaginar que eu era um animal acuado e machucado que precisavam de cuidados.

Mas em todos os meus anos naquela torre vazia e silenciosa descobri que almas quebradas são as mais perigosas.

—Quero consertar as coisas. —Afirmou, sem nenhum de nós dois desviar os olhos um do outro.

—Não pode trazer minha família de volta dos mortos, vossa alteza. —Lati a última parte, mais como um insulto. Seth comprimiu os lábios parecendo tentar conter o sentimento que estava passando por dentro de si naquele momento. —Não pode consertar as coisas. Se me colocar no mesmo cômodo que seu pai, vou tentar matá-lo, da mesma forma que tentei te matar.

—Evangeline... —Ele fez menção de rodear a cama, mas parou quando percebeu meu movimento em direção a porta. —O que posso fazer por você então?

—O que? —Soltei uma respiração pesada, confusa demais com aquilo.

—Não importa se não confia em mim, se tentou me matar. Entendo você e todos os seus motivos. Apesar de tudo, quero mesmo tentar consertar as coisas, por mais impossíveis que sejam. —Afirmou, engolindo em seco. —Não sou igual ao meu pai e não concordo com ele. Ter ido até aquela torre liberta-la... custou muito a mim. Mais do que você sequer pode imaginar. —Ele umedeceu os lábios com a língua. —Então, pode me dizer o que posso fazer por você. Pode me pedir qualquer coisa que seja, e farei. Meu pai pode não se importar com o que fez. Mas eu me importo.

Olhei pra ele por alguns segundos, sentindo meu coração martelando no peito. Olhei ao redor, observando o cômodo. Era um quarto simples, mas muito melhor do que aquela torre escura e vazia que eu estava. A cama era grande e macia. As paredes claras, com um tom creme. As cortinas estavam fechadas, mas eu ainda podia ouvir o som da chuva do lado de fora.

Depois do que parecia uma eternidade em que ambos ficamos em silêncio, voltei a olhar para Seth, que ainda me observava, como um gavião avaliando a presa. Desviei os olhos dele, apenas para encarar o livro que estava sobre uma mesinha ao lado da poltrona que ele estava sentado antes.

—Onde estamos? —Indaguei, ainda soando rude.

—Em uma das vilas humanas que faz divisa com o bosque das fadas. —Respondeu, com uma calma que me fez voltar a encara-lo. —Vamos ficar aqui essa noite e então viajar para a casa de campo da minha família, passaremos outra noite lá e então chegaremos ao reino.

Balancei a cabeça minimamente, enquanto voltava a encarar o livro que estava sobre a mesinha.

—Eu estava aprendendo a ler e a escrever quando tudo aconteceu. —Afirmei, sentindo minhas bochechas corarem de vergonha. Eu tinha 19 anos, já deveria saber ler e escrever. Mas até mesmo isso foi tirado de mim. —Quero que me ensine... —Fiz uma pausa, erguendo os olhos até ele de novo, mesmo envergonhada. —Por hora, quero que me ensine a ler e a escrever. Ou que ache alguém pra fazer isso.

—Eu mesmo vou ensiná-la. —Afirmou, concordando. —Mais alguma coisa?

Olhei ao redor, procurando qualquer sinal da espada dele ou da adaga que eu havia usado para atacá-lo. Mas tudo que parecia potencialmente afiado e mortal tinha sido removido do quarto.

—Por enquanto, não.

Por enquanto eu me preocuparia em não voltar para aquela torre.

[...]

Me surpreendi ao descobrir que tanto as janelas, como a porta do quarto estavam destrancadas depois que Seth saiu dali. Aproveitei o momento para me encarar no espelho. O reflexo era estranho pra mim. Não lembrava o tom negro e apagado dos meus olhos. Nem de como minha pele parecia branca demais, como se eu estivesse morta. Muito menos os meus cabelos, amendoados e apagados. Estavam macios, assim como a minha pele.

Toquei minhas bochechas coradas pelo calor das chamas, meus cabelos, braços, barriga e minhas pernas, sentindo os ossos do meu corpo magro. Eu poderia devorar um cervo inteiro, se pudesse. Estava com fome demais e minha barriga parecia oca.

A porta se abriu, com Seth passando por ela, junto com uma mulher empurrando um carrinho. Dei alguns passos, ficando próxima a lareira. A mulher soltou alguns pratos e taças sobre a mesa que havia ali, arrumando tudo. Quando terminou, puxou o carinho e saiu do quarto, deixando que Seth fechasse a porta.

—Com fome? —Indagou, puxando uma das cadeiras da mesa.

Olhei pra ele e para as comidas sobre ela, sentindo meu estômago se apertar e minha boca se encher de água. Eu estava morrendo de fome. Mas não fui até lá. Não queria me aproximar demais dele. Já havia sentido o calor do corpo dele contra o meu. Suas mãos ao redor de mim. Pensei que me acabaria me desmanchando quando alguém me tocasse. Mas eu me senti mais viva, como se aquilo fosse o necessário para me dar certeza de que eu não era apenas um fantasma.

Seth pressionou os lábios em frustração e assentiu, soltando a cadeira e girando até se sentar nela.

—Eu estou com fome. —Afirmou, começando a se servir, parecendo calmo e tranquilo, embora seus movimentos fossem duros e lentos, como se ele estivesse implorando internamente para que eu fosse até lá.

—Você disse que tinha uma proposta em nome do reino. —Murmurei, ainda sem sair do lugar. —Mas você não fez nenhuma.

—Certo, você tem razão. —Ele começou a servir o outro prato. —Venha jantar comigo e podemos debater sobre isso, o que acha?

Hesitei por alguns segundos, vendo ele encher meu prato de comida. Sem aguentar a fome, caminhei até a mesa, me sentando de frente pra ele, vendo a sombra de um sorriso passar nos seus lábios.

—Coma, princesa. —Pediu, indicando o prato.

—Não me chame disso. —Retruquei, observando ele puxar a faca que estava ao lado do meu prato para o lado dele, como se soubesse que eu iria tentar matá-lo de novo.

—É o que você é, não é? Uma princesa. —Afirmou, me encarando por entre os cílios longos. —Posso ser o filho do rei, mas você é a verdadeira herdeira do trono. —Ele me encarou com atenção, brincando com os talheres. —Eu estou muito disposto a entregar o trono a você, como é do seu direito. Mas meu pai nunca permitiria isso, de forma espontânea. Então, tenho uma ideia que pode ser boa pra nós dois.

—O que? —Questionei, olhando fixamente para o par de olhos azuis.

—Você se casar comigo.


Continua...

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