Capítulo I

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Estava chovendo. Sempre adorei como a chuva acompanhava meu humor, de forma a tentar acalmar minha alma. Ok, isso soa deprimente para um início. Mas, veja bem meu caro leitor, não lembrava a última vez na qual realmente me sentira feliz, viva. A vida, naqueles dias, estava sendo apenas uma meia-vida*. Para os entendedores de plantão, sabem que isso quer dizer simplesmente aquela que te consome, tira um pedacinho de seu ser em cada respirada. E é isso que eu estava sentindo, como se tudo que uma vez houvera sentido estivesse perdido em algum lugar.

*Meia-vida: conceito químico para o tempo no qual um elemento/substância reduz-se à metade.

Penso que este sentimento não era repentino ou por acaso, e sim algo construído com o tempo, um pequeno montinho de todas minhas incertezas e apreensões de um futuro insólito e sem sentido. Tudo era um sobreviver, um peso. Não pense que queria ir embora, seguir para outro plano, se é que este existe. Nunca quis me matar. Mas, reconheço, que queria sumir, simplesmente desaparecer, e assim não sentir mais este vazio. Viver estava carregando o nome de fardo e não de dádiva, e não é isso que deveria ser? Um milagre?

De qualquer maneira, não era essa a situação presente, e assim, deveria eu lidar com isso, precisava reaprender a viver, deixando de somente sobreviver.

Os últimos anos foram bem, digamos, complicados. Meus pais em pé de guerra, num conflito sem fim, aterrorizando o que se chama de paz, fazendo com que meu próprio ar se sufocasse. Digo, por esclarecimento e compaixão, que eles sempre foram ótimos pais. Não duvide deste fato. Contudo, devo ser sincera, a raiva dos olhos de meu pai e a falta de esperança e felicidade nos de minha mãe eram deveras um fator que incomodava minha mente sempre que estivesse sem um propósito para desviar a atenção. E é exatamente aí que se apresenta o outro problema de minha vida sem graça: eu não tinha mais um propósito. Tudo estava sendo robótico e insensível, uma sucessão de fatos, e não de lembranças de verdade, havia momentos em que minha respiração apenas sumia. A ansiedade sem razão me consumia. Afirmo e reafirmo "sem razão" porque tive uma boa vida. Boa escola. Bons dois ou três amigos. Bom irmão. Por que então eu ainda me sentia tão... Nada. Simplesmente nada.

Tentando dar um fim a essa tristeza a qual me sufocava, finalmente decidira dar um passo. Mudei-me para cá justamente por pensar que o mar sempre me trouxe uma calma sem explicação. Por algum motivo sempre foi como um confidente, uma espécie de casulo, onde eu poderia me esconder de tudo e de todos. Onde as ondas levavam o mal, e deixavam apenas a beleza e leveza de suas lindas bolhas cristalinas.

A casa que comprara era aconchegante. Trazia uma paz, além daquele cheiro maravilhoso de madeira, me senti num conforto só meu. Eu e minha pequena e simples companhia, à frente do oceano vasto que, já tinha certeza, seria o fator que me afastaria da solidão. Este lugar era perfeito.

Sendo já noite, pensava que entrar nas águas não seria a melhor escolha a fazer, afinal, eu estava longe de qualquer morador possível de me socorrer caso algo de ruim acontecesse, o que não era um problema, por assim dizer, já que nunca fui do tipo sociável. De qualquer maneira, decidi apenas lavar os pés, um consolo. Isso já bastava.

Saí da minha simples, mas minha, cabana, e segui para o mar. A areia molhada e fria era como um símbolo de calmaria sem igual, eu poderia ficar aqui para sempre. Mas, foi quando molhei meus pés, que algo de estranho, anormal, aconteceu. Um farfalhar nas águas, como se algo ou alguém estivesse lá. Uma presença me rodeava, algo além do azul que eu tanto admirava. Por algum motivo, ao ver seu rosto elevando-se, eu não tive exatamente medo. Era como se já o conhecesse, como se sua presença fosse tão natural àquele meio que quem destoava, certamente, era minha pessoa. Seu corpo foi se revelando cada vez mais, orelhas pontudas, joias incrivelmente polidas em seu pescoço, músculos notáveis (para não falar outra coisa). Ele era, certamente, uma figura sem igual.

Porém, ao perceber a lança que carregava, o instinto foi mais alto que a admiração. Comecei a me afastar. 

- Por que fugir de mim, criatura da terra? - disse a figura com certo sotaque, o que transparecia uma calmaria e confiança demasiado exacerbada.

- Você está com uma lança?! - falei ironicamente, arrependendo-me no mesmo momento, já que de fato ele carregava uma lança.

- Se quisesse realmente te matar, o faria sem pestanejar.- disse com um sorriso, percebendo minha ironia.

- Duvido muito. Um homem, no meio do nada, surge do mar com um objeto para matar. Uma mulher indefesa e sozinha. Digamos que desconfio que isso seja verdade.- talvez você queira sim me matar, pensei.

- Você tem razão parcial, cara dama, contudo, afirmo que indefesa você não é. - falou com um brilho obscuro nos olhos olhando diretamente aos meus, como se lesse minha alma, a entendesse.

- Ainda não sei se posso confiar em você.- assenti à lança. No mesmo instante, ele a jogou para o fundo do mar, o que demonstrou uma força certamente não comum.

- Agora pode.

O Mar de Talokan // MarvelOnde as histórias ganham vida. Descobre agora