Capítulo 3

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Jace Wayland e Izabelle estavam no topo da escada, esperando Gideon subir. Ele sentiu a sensação de peso abandonar seu corpo quando trancaram Magnus Bane no porão e se distanciaram. O feiticeiro era intimidador e não seria fácil domá-lo. Seus olhos ligeiros e língua ferina eram tudo que Gideon considerava abominável nas pessoas. Prezava pela companhia de pessoas silenciosas e focadas. Gente com quem ele não precisaria se esforçar para conversar ou agradar.

Não que ele estivesse pensando em fazer algo disso para Bane. A ironia dele era autocorrosiva, pelo menos na visão de Gideon. Uma parte dele sabia que Bane usava a ironia para provocar alguma coisa nas pessoas, e que ele se contorcia quando simplesmente não lhe davam atenção. Gideon não se importava. Queria apenas um escravo habilidoso em magia.

- O que conversou com ele? - Jace perguntou.
- Só avisei quando será a Cerimônia.
-Então por que nos mandou sair ? - Izzy parecia irritada.
- Por que ele vai ter que começar a se acostumar comigo ditando as ordens.

Eles caminharam juntos pelo corredor comprido e sombrio. Às vezes Gideon se pegava pensando em como seria se houvessem janelas ali, pelas quais a luz do sol e da lua pudessem entrar.

- Ele parece um cavalo selvagem - Izzy comentou - Vai ser divertido fazê-lo se dobrar...

Gideon deu de ombros. Tinha domado inúmeros cavalos selvagens, e alguns submundanos também. Nunca domara um feiticeiro, mas ele achava que não seria tão diferente. Afinal, eram todos animais, de certa forma.

Entraram no Salão Principal. A mesa estava posta, e eles se sentaram, Catarina se mantendo de pé à distância. Jace a dispensou com um aceno e ela saiu apressadamente pela porta.

- Catarina se dobrou facilmente - Izzy relembrou.
-Com mulheres isso é bem mais fácil Izabelle - Jace levantou as sobrancelhas e Gideon não quis pensar no que isso significava. Eles tinham ameaçado usar Catarina? Eles chegaram a fazer isso?
-Ela não é uma mulher - Izabelle deu de ombros, enquanto uma criada lhe servia um generoso pedaço de faisão - E nenhum homem decente faria isso com uma... filhote de demônio. O padre disse que isso une sua alma à deles e você também fica condenado.

Wayland estava muito ocupado comendo para responder. Nenhum deles se preocupou que Gideon não respondesse ou participasse da conversa. Já tinham se acostumado com o amigo sempre silencioso. Desde criança ele falava muito pouco, embora estivesse sempre atento a tudo.

Quando terminaram de comer, Jace se despediu e Izabelle subiu as escadas em direção a seu quarto, as vestes escuras rodopiando e mostrando a calça que ela sempre usava por baixo. Izzy não era uma mulher convencional e não raro, quando estava somente com Gideon, ela despia as vestes pesadas e usava apenas a calça e uma camisa de algodão bruto. Era um segredo deles, que se Robert ou Maryse descobrissem, fariam um escândalo, mas Gideon estava disposto a dar cobertura à irmã.

Estava subindo as escadas, vagarosamente, pensando se tomaria banho ou se apenas desmaiaria de sono, quando uma pequena sombra disparou pelo corredor, descendo as escadas de dois em dois degraus e se atirou em suas pernas.

-Irmão, irmão, irmão - o pequeno menino de cabelos negros e olhos azuis penetrantes o encarou. - O senhor capturou mesmo um feiticeiro?
-Sim - Alec acariciou o topo da cabeça de Max, desajeitadamente. Não sabia lidar com a enorme afetuosidade que o irmão parecia ter por ele - E você deveria estar dormindo.
-Eu fugi - o pequeno deu de ombros - A criada está me procurando enlouquecida.
-Danado - Gideon o afastou um pouco. Essa proximidade o sufocava - Volte para o quarto.
-Quando eu poderei vê-lo? - Max ignorou a ordem do irmão. Isso era algo que Gideon gostava nele. Max não parecia ter medo e nem pressa em obedecer a qualquer coisa que ele dissesse.
-No dia da Cerimônia de Ligação - respondeu, recomeçando a andar - Nenhum dia antes disso.
-E quando será a Cermônia?
-Cerimônia - o irmão mais velho corrigiu - Daqui a dois dias. Vá dormir Max. Isso é uma ordem.

O pequeno deu de ombros e correu pelo corredor para seu quarto. O mais velho o observou sumir e depois caminhou para a ala sul do segundo andar do castelo, onde ficavam seus aposentos. Depois da ala leste, onde ficavam os aposentos do Casal Lightwood, a ala sul era a maior da Casa. Gideon tinha ali um conjunto de cômodos para ele.

Seu criado pessoal, Hodge, estava esperando-o na porta, e abriu-as de par em par para que pudesse entrar. O primeiro cômodo era uma espécie de corredor largo, decorado parcamente, do qual se viam duas portas. A porta da direita era o quarto de banho exclusivo para o primogênito dos Lightwood. A da esquerda dava para o seu quarto de dormir, escritório e biblioteca pessoal. Não que Gideon fosse muito de ler.

- Senhor, seu banho está preparado - Hodge avisou e saiu em direção ao quarto de dormir. Não estava esperando nenhuma resposta de Gideon, porque sabia que ele simplesmente não responderia. Se quisesse banhar também o faria sozinho.

A princípio foi difícil para Hodge se acostumar aos hábitos estranhos do Caçador de Sombras, mas com o tempo se tornou mais fácil. Desde que fizesse tudo de acordo as exigências do patrão (banho morno, ser acordado às quatro e meia , corte de cabelo a cada lua crescente, quarto razoavelmente limpo, e não, sob hipótese alguma, tocar nas armas deste), ele não era incomodado por nada.

De fato, Hodge se perguntava se o patrão era normal. Na maior parte das vezes, ele simplesmente ignorava o mundo ao redor. Por experiência própria, o criado sabia que Gideon não apenas parecia estar em outra dimensão. Ele estava. Porém, era surpreendente a forma como voltava para a realidade com velocidade alarmante caso algo lhe chamasse a atenção.

Para Hodge, Gideon era um idoso no corpo de um jovem adulto. Ele não bebia muito, não ia a torneios, raramente pagava prostitutas e nem perdia tempo conversando com os amigos (que realmente eram apenas sua irmã Izzy e o menino Wayland). Era solitário. Uma alma antiga, perdida, e sem nenhuma esperança de salvação. As pessoas o temiam. Hodge tinha pena dele.

Gideon afundou na tina com água morna que cheirava a erva-sabão. Fechou os olhos, abraçando a sensação de abandono e descontrole que só se permitia sentir quando estava sozinho. A água morna lhe dava um conforto que ele não queria admitir que precisava. Sempre fazia isso quando tomava banho.

Não queria precisar de ar, de respirar ou simplesmente de viver. 67, 68, 69, 70... Subiu para a superfície quando o cérebro já ardia com a falta de oxigênio, e os pulmões doíam. O ar frio da noite foi uma benção para seu corpo e uma maldição para a alma. Gideon não sabia para quê servia essa existência que chamavam de vida. Não havia sentido em nascer só para morrer após algum tempo. Desde pequeno não se sentia pertencente a nada e a ninguém. Estava solto e perdido nessa imensidão, e flertar com a morte era a única coisa que o divertia minimamente. Por mais que quisesse fechar os olhos e dormir para sempre, mesmo que cada vez mais achasse todas as coisas deste mundo um grande tédio, apenas flertar com a morte tinha que bastar, pois tinha muitas responsabilidades a cumprir.

Terminou de tomar banho, se esfregando com um sabão e bucha vegetal, se enxugou e vestiu as roupas para dormir que o criado deixara sobre uma cadeira ao lado da tina. Rumou para o quarto, o cansaço lhe vencendo e se jogou sobre a cama confortável e larga.

Antes que o sono o embriagasse a ponto de não distinguir mais nada, um pensamento estranho lhe passou pela mente. Ele, Alexander Gideon Lightwood, estava dormindo como um rei. Diretamente três pisos abaixo de si, um feiticeiro estava dormindo como um mendigo.

Servidão e Liberdade || Malec Where stories live. Discover now