Capítulo 4

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Dizer que tinha acordado era uma palavra forte. Magnus não dormira. Apenas cochilou brevemente, mas a preocupação, o desconforto do catre e o ar frio e silencioso demais o despertavam constantemente. Ainda não tinha tomado a sopa, e a fome começava a roer seu estômago. Não que ele quisesse fazer greve de fome, mas a verdade é que era orgulhoso o suficiente para se prestar a comer aquele líquido mal cheiroso enquanto ainda estivesse bem.

Foi por esse motivo que ele acordou muito cedo e seus olhos dourados eram a única luz na escuridão quando uma criada idosa tentou entrar, equilibrando uma pesada bandeja de prata e uma tocha, nas mãos já enfraquecidas.

-Eu ajudo com isso - ele se levantou e se aproximou dela, que levou um susto enorme.

- Creio em Deus Pai Todo-Poderoso - fez o sinal da cruz três vezes - O feiticeiro não dorme!

- Acredite em mim, - Magnus retrucou - Nessas condições a senhora também não dormiria.

Ela tremia levemente e Magnus retirou a bandeja das mãos dela, que recuou até encostar na parede, e pendurou a tocha no ganho. Magnus examinou o conteúdo da bandeja. Obviamente eram as sobras do jantar que ele vira ao passar pelo Salão Principal na noite anterior. Sabia que não estava em posição de exigir, mas uma fúria surda se avolumava dentro dele.

- Diga ao meu senhor Alexander Gideon, que não vou comer as sobras do jantar dele. Ainda não sou um escravo de sua senhoria e tenho certeza de que podem preparar uma comida decente para mim. Não estou pedindo demais, a senhora entende, pelo Anjo, pare de tremer, não vou lhe fazer mal, eu apenas me recuso a comer sobras. Além disso, tenho certeza de que há Dormentia nesta comida.

Magnus podia sentir o cheiro da poção para adormecer seus poderes. Também tinha sentido o mesmo cheiro na sopa aguada. Não ia comer isso por vontade própria.

- A senhora entendeu o que lhe pedi para fazer?

A mulher balançou a cabeça que sim, e saiu apressadamente pela porta, seu vestido de lã surrado desaparecendo pela fresta que Magnus podia ver. As horas se arrastaram lentamente e conforme a fome apertava, ele quase se arrependia de ter negado a comida. Tinha certeza de que eles não lhe dariam mais nada para comer durante o resto do dia.

Contou as baratas que conseguia ver na escuridão e se divertiu espantando um rato. Seus olhos o faziam parecer um gato naquele breu, e o rato pulou tão alto que Magnus não conseguiu reter a gargalhada. Depois tentou lembrar todos os feitiços que tinha aprendido para encobrir fome, dor e frio, mas a cela estava tão incrivelmente pesada de magia que ele não conseguiu evocar nenhum.

- É um inferno - disse para as paredes - Imagine só, estar livre em um momento e no momento seguinte, se ver totalmente submisso a um nephilim que mal saiu das fraldas. É um absurdo...

Ouviu os passos na escada, e ficou alerta. Esperava muito que fosse comida. E era. A mesma senhora que tinha vindo mais cedo, agora trazia apenas um prato, que lhe estendeu, receosa.

- Olá - ele disse animado, ao sentir o cheiro da comida - Muito obrigado.

Ele sentiu o cheiro da poção Dormentia , mas sinceramente não estava mais tão disposto a reclamar. Estava sem comer há dois dias quando fora capturado. A fome não lhe permitia mais exigir nada. Sorriu para a senhora e sentou-se na cama. Ergueu as sobrancelhas quando ela não saiu.

- Quer me fazer companhia? - perguntou irônico - Por mais que eu quisesse muito comer um rato morto agora, essa comida de humanos vai servir - se divertiu ao ver o rosto dela se contorcer em horror - Me diga uma coisa, a senhora falou o meu recado diretamente para o Lightwood?

- S..sssim - ela sussurrou. Magnus pegou um pedaço de frango com as mãos e mordeu um pedaço. Estava delicioso. Seu estômago roncou, agradecido.

- Vamos lá mulher - ele acenou - Me conte como ele reagiu. Aposto que ficou furioso.

- Na verdade não - um brilho maldoso se acendeu no olhar da mulher - Eles estavam à mesa, quando dei o seu recado. O senhor Gideon achou que era justo o seu pedido e pegou o prato em que Church estava comendo para que eu lhe trouxesse.

Magnus sentiu um calor subir pela garganta e inundar suas faces. Church não parecia o nome de uma pessoa.

- Church? - perguntou o mais pausadamente que conseguia - Quem é Church?

A mulher deu de ombros.

- O gatinho de minha senhorita Izabelle.

Foi demais para Magnus. No instante seguinte tinha virado o prato no chão, quebrando a porcelana cara. A criada recuou, amedrontada, e ele não teve nem um pouco de pena dela. Ela tinha ficado apenas para ver o instante em que ele se servia do prato em que um gato já tinha começado a comer. Encurralou-a na parede. Sabia que a culpa não era dela, mas o ódio não lhe permitia ser justo.

- Mande seus senhores para o inferno. Se Sir. Alexander quer um feiticeiro, ele vai ter que procurar outro. Eu não me importo de ter que explodir a metade desta Casa, se for preciso. Saia já daqui!

Ela soltou o ar que prendia, um terror inundando seu olhar e correu pela porta afora, subindo as escadas mais apressadamente do que ele achava que uma senhora naquela idade poderia. Olhou nauseado para o chão, onde um rato e baratas já se banqueteavam com a comida. Estava sentindo um misto de horror e autocomiseração. Nunca tinha sido tão humilhado em toda sua vida.

Gideon estava satisfeito. O almoço estava delicioso e ele agradeceu com um aceno de cabeça ao criado que o servia, também sinalizando que seu prato já podia ser retirado. Church estava aos pés de Izabelle, comendo a outra porção que lhe fora posta. Gideon não pôde deixar de sorrir ao pensar no feiticeiro, tão orgulhoso, comendo do prato que o gato tinha lambido. Deveria ter descido ele mesmo e levado o prato. Seria uma cena muito interessante de ver.

Mal acabara de pensar isso e a velha Amatia entrou novamente na sala, desta vez ofegante. Ela estava com a mão no coração e Gideon se levantou rapidamente da mesa. Seus irmãos também encararam a criada, surpresos.

-O que há mulher? - Izabelle perguntou, alarmada.
-Ele .... aquele... ele .... - a mulher arfava, lutando contra as palavras - Se descontrolou. Quebrou tudo. Creio em Deus Pai de Amor, Misericordioso.
-Ele não comeu ? - Gideon estava começando a se sentir muito irritado.
-Só um bocado. Quando soube que era do gato, oh céus, ele enlouqueceu.
-Como ele soube que era a comida do gato?

Amatia não ousou levantar os olhos.

-Eu deixei escapar, não foi por querer senhor... Perdoe-me.

Gideon rosnou. Odiava esse drama todo. Ele mesmo resolveria o problema. Estava sem a mínima paciência.

-Faça um prato agora - ordenou ao moço que lhe servira.

Quando o prato estava cheio, ele o pegou com uma mão e empunhou sua adaga na outra. Siga me, ordenou para Amatia e desceu as escadas com tanta fúria que os irmãos não se atreveram a lhe perguntar nada.

Abriu a porta do porão com violência, e teve que piscar várias vezes para a cena que encontrou. O feiticeiro estava sentado no catre, as botas jogadas a um canto, a roupa em cima da cama, e vestia apenas a calça surrada.

Ele esperou algum comentário irônico, que surpreendentemente, não veio.

-Soube que meu hóspede não está satisfeito com o serviço de quarto - disse para os pontos brilhantes que eram os olhos do outro - Acredito que posso fazer melhor para lhe agradar.

O feiticeiro não falou nada, apenas o encarou de volta, e Gideon reprimiu um calafrio que tentou subir pela espinha. Odiava que Magnus estivesse calado, porque de repente, ele parecia muito mais perigoso. Não ia se intimidar, entretanto. Andou pelo pequeno espaço e colocou a bandeja na cama. Com um sorriso que não chegava aos olhos, ergueu a mão e encostou a fria lâmina da adaga no pescoço do submundano.

- Ou você come, ou você sangra.

Servidão e Liberdade || Malec Where stories live. Discover now