Capítulo 10

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Catarina Loss andou cautelosamente pelo corredor longo que levava ao Salão Principal da Casa Lightwood. Com o tempo tinha aprendido a burlar algumas regras de servidão. Agora por exemplo, o senhor Wayland tinha lhe dispensado dizendo Pode ir, Gideon não vai precisar de você. Ele não tinha lhe mandado ir para casa, apenas ir.

Ela tinha se encontrado com Magnus, descendo as escadas naquela situação miserável e seu coração se partira. Não podia ir para casa e deixá-lo naquele estado. Ajudou no que pôde, ansiosa por reparar a traição que fora obrigada a cometer. Não se perdoaria nunca, mesmo sabendo que não podia fazer nada a respeito.

Bane era a pessoa mais livre e justa que ela conhecera em toda sua vida. Era o irmão amado que nunca tivera. Sob a tutela dele se sentira livre e amada. Em fato, pensou olhando para os dedos que já começavam a desbotar, mostrar o tom azulado, fora somente convivendo com ele que aprendera a gostar um pouquinho da sua pele azul e cabelos platinados. Agora os Wayland a obrigavam a usar magia para esconder sua cor de pele.

Ao escutar o burburinho vindo do jantar de Comemoração, se esgueirou para as sombras e se escondeu atrás da imensa pilastra que dava para a entrada do Salão. Queria observar melhor, porque lhe parecia muito pouco plausível aquela história de Robert Lightwood ter aceitado de bom grado seu filho apanhar de um submundano, e ainda por cima, promovê-lo a Curador.

As pessoas andavam e conversavam, e bebiam vinho. Muito vinho. Algumas dessas pessoas aparentemente tão gentis e atenciosas eram as mesmas que decidiam arbitrariamente quem devia ser punido ou não, quem iria para o céu e quem já podia começar a viver o inferno aqui na terra, quem iria para a fogueira... E Cat estremeceu ao pensar em fogueira. Imediatamente sua mente a transportou para a situação da qual tinha salva por Bane e os Irmãos do Silêncio.

A noite estava clara e as estrelas brilhavam muito. Cat não sabia se na verdade tudo estava mais vívido ou se a tensão da morte iminente a fazia ver tudo com mais cor e beleza. Estava amarrada com cordas enfeitiçados (que ironia) e impossibilitada de se mexer. Abaixo dela, as pessoas colocavam lenha no que seria sua pira. Ela não queria olhar para baixo e ver criancinhas a fitando com um ódio irracional. Não queria enxergar entre seus acusadores, pessoas que lhe tinham pedido ajuda e agora fingiam que não a conheciam. Não queria olhar para pessoas. Olharia para o alto, fitaria as estrelas e a lua. Olharia para o Divino, magoada por ter sido abandonada, mas esperando ser recebida em algum lugar melhor do que essa terra. Não escolhera nascer assim. Não gostava de sua pele azul brilhante e os cabelos tão brancos que pareciam neve. Mas gostava de sentir a magia pulsando em suas veias, o calor reconfortante de poder ajudar pessoas que estavam à beira da morte. Ajudar pessoas... Salvar doentes terminais. Isso era motivo o suficiente para ser condenada à morte.

Tinha sido apanhada em uma emboscada. Alguém mentiu sobre ter um parente próximo terrivelmente doente. Ela fora ajudar. O suposto doente era o padre e estava acompanhado por um feiticeiro que Cat desconhecia. O intuito não era somente matar feiticeiros. O intuito era mostrar para a Igreja que estavam fazendo um bom trabalho. Então o feiticeiro traidor da espécie a amarrou com cordas enfeitiçadas. Foi exposta como objeto na vila. Vieram pessoas de muitos lugares para lhe ver, insultar, cuspirem na sua pele estranha. Mas não ousavam tocar-lhe.

Por isso, era atingida por pedaços de madeira, frutas podres, qualquer coisa que pudesse ser arremessada. Depois de um tempo, não doía mais. E isso era pior. Não sentir nada, nem esperança, nem medo, era terrível. Foi quase um alívio quando chegou o dia da fogueira. Que fosse rápido, que fosse indolor. Tinha poupado toda sua energia mágica para tentar amenizar a dor da morte. Ergueu os olhos ainda mais alto. Tinham puxado seu cabelo e ele caía em seus olhos, impedindo de ver direito o que se passava.

O padre estava rezando em um latim precário, as crianças gritavam pela sua morte, homens a xingavam de toda a espécie de nomes. Encarou-os. Não ia morrer como covarde. Não pôde evitar o tremor quando o ajudante do padre chegou com uma tocha. O padre se benzeu três vezes, e com uma determinação cruel, jogou a tocha na pira. As chamas se ergueram rápidas e ela sentiu o calor infernal lamber a sola de seus pés. Então, de repente, uma confusão se instaurou. As pessoas gritavam e corriam, e ela também gritava, de dor, de medo...

Servidão e Liberdade || Malec Onde histórias criam vida. Descubra agora