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Minha memória oscilou quando a imagem do meu pai apareceu na minha frente, tão viva e sem cor. Estávamos no escritório de novo. Sua mesa estava atrás de mim enquanto ele, lentamente, andava em minha direção. Em sua mão, uma corda dura e rígida, grossa e mal tratada estava enrolada. Um tremor percorreu minha espinha.

Ele não falou, nem piscou, apenas levantou a mão e desferiu um golpe no meu rosto. Cai de lado, tossindo forte. Lágrimas encheram meus olhos, mas eu não solucei. Não protestei, era nova demais para ter coragem. Tive apenas dois anos depois, quanto completei dez e comecei a enfrentá-lo recebendo muitos hematomas.

Tinha ido pedir para ele comprar um xarope nesse dia. Ele disse para que eu comprasse com meu próprio dinheiro pois não gastaria algo comigo. Falei que não tinha dinheiro e insisti para que ele comprasse. Ele me bateu por isso.

Era inverno e às vezes eu tinha alergia. Precisava do xarope; ele não compraria para mim.

— Quantas vezes já falei que você não deve insistir quando eu digo não? — ele esbravejou. Estava bêbado porque tentava fazer a enxaqueca passar com mais bebida.

— Me d-desculpe.

Já havia perdido as contas de quantas vezes havia implorado isso a ele. Ele me bateu no outro lado do rosto enquanto eu me afogava com minhas próprias lágrimas.

Ouvi sua risada rígida soar aos meus ouvidos antes de ele chutar minhas costelas. Exatamente como Renoward havia feito minutos atrás, porém de fato para machucar. De fato para deslocá-las e eu ser obrigada a ficar de cama por meses.

— Desculpas não mudam o que você fez.

A memória oscilou de novo, me levando a uma garotinha de sete anos batendo com todas as suas forças contra um saco de pancadas em um porão mal iluminado. Estávamos em Ayllier. Nesse dia, havia decidido que aprenderia a, pelo menos, me defender deles. Busquei em alguns livros, saí escondido para achar outros. Não da mansão. Saí do quarto. Ninguém sai da mansão vivo.

Hale acabou me ajudando também. Ele aprendeu também.

Nenhum de nós aguentava mais.

Alguns dias, não treinávamos por causa dos rasgos nas nossas costas. Outras vezes, porque eu decidia ficar o dia inteiro chorando. Aquela foi a primeira vez que entrei em contato com treinamento. O que não aprendi com os livros, tive que aprender na prática. Ou observando os que treinavam, escondida debaixo de uma bancada de madeira e encolhida enquanto a barriga doía de fome.

Os outros; aqueles que obedeciam o que mandavam. Aqueles que eram manipulados.

— Eu quero ir embora — sussurrei para mim mesma, na calada da noite, enquanto meu irmão dormia e ele não podia me ouvir. Tinha medo de contar para ele. Mas ele nunca foi igual ao meu pai.

Eu olhava meu reflexo no espelho trincado. Distorcia um pouco a imagem, mas ainda conseguia identificar a silhueta torta, esguia e com o nariz vermelho, sob a luz da lua.

— Mas eu nunca vou poder fazer isso.

Na verdade, eu fiz. Mas me custou muito caro.

Pisquei algumas vezes antes de voltar à realidade. Minhas mãos tremiam e minhas pernas falharam quando caí para trás. Quase não percebi o impacto contra o chão. Teria revidado os golpes de Renoward se não estivesse quase soluçando. Engoli em seco para evitar as lágrimas.

Sempre odiei, com todas as forças, como isso me fazia ficar impotente; como me fazia perder o equilíbrio. Enxuguei as lágrimas com força, torcendo para que eu parasse de chorar logo, mas não era eu quem as controlava.

— Gaëlle.

Renoward se aproximou e agachou-se na minha frente, mas não me tocou. Percebi Aaden jogar uma garrafa d'água para o soldado. Ele abriu com facilidade antes de me entregar.

— Beba um pouco.

Agarrei a garrafa como se fosse a última do mundo e virei com tudo, sentindo o líquido transparente e refrescante escorrer pela minha garganta, mesmo que vazando pela boca e escorrendo pelo pescoço, misturando-se com as lágrimas. Acho que ainda não tinha parado de tremer.

— Desculpa, eu... — acho que nunca odiei tanto uma palavra quanto essa.

— Por que está pedindo desculpas? — Era a voz de Renoward; eu já não olhava para nenhum dos dois.

— Eu não posso continuar. Não dá.

Fechei uma das mãos em um punho.

— Você tá fazendo o seu melhor. Não deveria pedir desculpas por isso. — Ergui meu olhar pra ele.

Mordi minha bochecha com força, evitando deixar as lágrimas escorrerem.

— Por que outra pessoa não pode fazer isso? — perguntei mais para mim mesma do que para algum dos dois.

Renoward me analisou.

— Porque é uma escolha sua. Algo seu, que apenas você sente, e outra pessoa não vai invadir você para arrancar lembranças.

— Eu não consigo — sussurrei.

Me odiei por ser tão impotente. Me odiei porque sabia que era fraca e não sabia sair dessa. Sabia que chorar não me levaria a nada, mas estava cansada demais.

Naquele momento, na frente de Renoward, depois que ele me golpeou na barriga, as lembranças foram inevitáveis, e a impotência mais ainda.

Reprimi palavras. Ele confirmou com a cabeça.

— Consegue sim. Não se limite ao que diziam para você. O Imperador não nos criou para sermos limitados a um emaranhado de palavras que pessoas de má índole dizem. Isso só vai te destruir mais. Arranque o espinho, Gaëlle. Levante e lute.

Comecei a me perguntar o quanto ele sabia. Se Renoward sabia do meu passado; do que houve nele. Eu teria perguntado se estivéssemos sozinhos.

Devagar, assenti com a cabeça.

— Não precisa fazer isso hoje, mas não pode conviver com esse espinho para sempre. Isso só vai te matar aos poucos.

Eu sempre odiei o quão frágil me sentia quando o assunto era Ayllier e o quanto isso poderia ser facilmente usado contra mim. E eu quis contrariar o soldado por ele saber disso. Por ele estar certo.

Mas ninguém era capaz de arrancar o tal espinho.

Nem mesmo eu.

Arthora | A Queda de Um ImpérioWhere stories live. Discover now