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Era manhã, e a água quente escorria e lavava meu corpo, minhas feridas. Descia por minhas curvas, retirando toda terra, pólvora, amargura e medo, que esteve acumulada sobre minha pele por dias. A água escorria pelo meu cabelo vermelho, tornando-o mais escuro. E escorria pelo meu rosto, lavando a água salgada que eu não sabia se escorria junto, mas pela dor em meu peito, era claro que escorria.

Iria passar. O luto iria embora, uma hora ou outra. Eu sabia disso, porque já havia entrado em luto uma vez. Doía, mas eu sabia que não duraria para sempre. A dor se transformaria em lembranças. Boas e bonitas, que eu guardaria em um pote na minha mente para nunca mais abrir.

Desliguei o chuveiro, tremendo. Não de frio. Não de medo. De saudade.

Eu não queria deixar ele ir. Porque se Hale fosse, eu não teria mais ninguém. Ninguém jamais me aceitou e me amou como Hale.

Mas eu precisava deixá-lo ir. Porque é assim. Não confessei isso na época. Não confessei que eu sabia que precisava aceitar a morte dele, porque eu queria me apegar a ideia de que ele estava bem, e que eu poderia abraçá-lo de novo. Sentir seu carinho. Seu amor. Seu perdão por ser uma péssima irmã.

A morte dele era culpa minha. Eu jamais me perdoaria por isso.

A lembrança do seu corpo inerte sendo carregado pelos soldados me voltou a memória enquanto eu vestia a calça. Engoli em seco, sem me dar o trabalho de jogar o cabelo para trás ou coçar a palma da mão.

Saí do banheiro e fui até a cama, puxando o grande baú de couro preto que havia lá embaixo. Foi de lá que tirei a minha roupa. Havia tanto vestidos chiques quanto roupas confortáveis. Eu peguei a primeira que vi.

No fundo do baú, entre os quilos de tecido, um pote de vidro transparente, grosso, liso, com uma tampa de rosquear preta estava lá. Vazio.

O abri, deixando-o no chão. Depois, retirei o cordão que Hale me deu no primeiro dia em Arthora. O que me restou dele. Ainda me lembrava como se fosse no dia anterior. Do carinho dele. Da alegria que ele estava quando me mostrou o lugar.

Beijei o pingente, devagar, sem pressa. Depois, acariciei, sem ainda entender o que era aquele símbolo.

Com cuidado, coloquei-o no pote de vidro, rosqueando-o, para nunca mais ser aberto.

A passos lentos, andei até a porta que Renoward entrou. Dei duas batidas, abrindo-a logo em seguida. Seus olhos se levantaram do papel que ele lia para mim.

O lugar era enorme. Infinitamente maior do que eu jamais imaginaria. Um espaço com um sofá, outro com uma escrivaninha, de madeira tão escura que chegava a ser preta. A cadeira era pequena, simples. Uma grande prateleira, repleta de livros, se estendia ao longo de toda a parede esquerda. Lá no fundo, um balcão com mármore preto tampava parte da minha visão, onde um fogão a lenha estava exposto. Era quase uma casa.

Ele esperou.

Engoli em seco e ergui brevemente o pote.

— Podemos enterrar?

— Enterrar?

Assenti, segurando as lágrimas e esfregando o dedo no vidro frio e liso, como se pudesse apagar uma lembrança.

— Ele merece um funeral. Mas eu não posso dar a ele porque... porque...

Me encolhi, soluçando. Deixei as lágrimas escorrerem, sem me importar. De repente, desejei desaparecer, como Hale simplesmente se foi. Mas eu não podia. E o luto não iria embora depressa.

Eu precisava dele, precisava tanto dele. Ele era único, minha família. Meu único irmão.

Solucei sem parar, sem me importar se Renoward estava ali, sem me importar com as coisas que ele disse. Outro espinho se infincava no meu coração naquela manhã. Outro espinho que eu não seria capaz de arrancar. Porque é assim. A gente quer, mas a dor não deixa. E doeria bem mais se eu o arrancasse.

Estava tão cheia de lágrimas que não reparei quando Renoward se aproximou. Hesitante, ele segurou meus ombros, me observando soluçar por alguns segundos.

Depois, seus braços me puxaram pra perto, pra muito perto. Ele encostou minha cabeça contra seu peito, me aconchegando entre seus braços. O soldado não se importou quando molhei a camiseta dele. Ou quando o apertei tão forte, que pensei que arrancaria o ar de dentro dele.

Renoward apenas deixou que eu chorasse. Em silêncio absoluto, não protestou com sequer uma respirada diferente. Poder ouvir seu coração, o coração de alguém vivo, bater, era reconfortante. Ele batia incerto, estranho. Parecia hesitante ao bater também.

Sua respiração era calma. Tão límpida que não podia ouvi-la, apenas senti-la. Contar os batimentos cardíacos dele me acalmou. Meus soluços diminuíram, mas as lágrimas continuaram a escorrer sem parar.

— Vamos enterrar — disse. Sua voz soava mais forte ali. Mais viva, mais segura de si. Como se a máscara retirasse parte da vivacidade e da energia que sua voz carregava. — Vamos dar um jeito de fazer isso.

Eu não sabia por que ele estava sendo legal comigo.

Renoward me abraçou por um bom tempo. Por tempo até demais. Até meu rosto ficar amassado por causa das dobras da camiseta. Deixou que eu chorasse e me acalmasse em seus braços.

Nos afastamos. Ele desviou o olhar quando olhei pra ele pedindo uma explicação do porquê ele fez isso.

— O que vai enterrar? — perguntou.

Ergui o pequeno pote de vidro na minha mão.

— Ele me deu quando viemos para cá.

Renoward me pareceu tenso. Ele negou.

— Não deveria fazer isso.

— O quê? Mas você disse...

— Vai querer ter isso depois. Sua primeira reação é querer se livrar de tudo o que te faz lembrar ele, mas você vai precisar disso depois. Vai querer ter algo que restou dele com você.

Cerrei os dentes.

— Não quero nada dele comigo.

A não ser que seja ele, completei mentalmente.

O soldado respirou fundo.

— Certo. Quando descobrir que tenho razão, não reclame.

Não respondi.

— Espere anoitecer e te levo. Podemos enterrar lá no jardim, perto das árvores. Ninguém vai notar se formos discretos.

Assenti. Ele acenou com a cabeça.

— Me segue.

O soldado deu meia volta, indo até os armários da cozinha e pegou algumas caixas medicinais. Me aproximei, observando-o. Ele retirou algumas coisas e mexeu em outras antes de pedir que eu levantasse a manga. Depois de passar a pomada, Renoward refez os pontos da ferida em poucos minutos. Senti a dor melhorar. Ele manteve um curativo por cima quando acabou.

— Agora descanse — disse. — Tem comida nos armários e a água da torneira é limpa. Pode ir em qualquer lugar, ler qualquer livro, fazer qualquer coisa. Só não entre na última porta, está bem?

Concordei, sem forças para protestar ou perguntar por quê.

Voltei a passos lentos para o quarto, deixando a porta aberta. Renoward não se incomodou em fechá-la.

Eu fiquei parada, encarando o chão, sentindo as lágrimas automáticas escorrerem. Me encolhi na cama, deixando que a tristeza me puxasse para baixo do mar, enchesse minha boca com água salgada e me afogasse junto a culpa.

Meu barco estava furado.

E eu continuava a afundar.

Arthora | A Queda de Um ImpérioWhere stories live. Discover now