CAPÍTULO 47

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A cabana era fria, fria demais, o que era curioso, pois Gabriel nunca foi um amante do sol, das praias da Califórnia, mas Michael duvidava que ele apreciava aquela câmara gelada. Michael vestiu o grosso e pesado casaco que havia ao lado da porta, as botas revestidas de pele, as luvas e o gorro.
Gabriel estava na cozinha, sentado à mesa, uma refeição fria a sua frente. Outra cadeira estava a mesa a espera dele. Michael se sentou.
"Onde ela está?" Michael se sentou, Gabriel sorriu.
"Carne de alce? O seu está quente, diferente do meu." Ele cutucou o bife que estava no prato a frente de Michael. O cheiro estava ótimo, a carne do jeito que ele gostava, Michael deu de ombros e comeu. Gabriel não ganharia nada envenenando ele.
Eles comeram em silêncio, Michael tentando se lembrar de quando foi a última vez que os dois se sentaram e comeram em paz, com aquela sensação de que eram irmãos, de que estavam juntos não importando o resto. Fazia muito tempo.
"Quando você volta para Homeland?" Gabriel perguntou depois de engolir um bocado de carne.
"Não sei. Eles não tem muito uso para mim, já que não sou confiável." Gabriel riu, Michael também.
"Eles são incríveis. Bons de uma forma que nunca vamos entender." Gabriel disse. Era aí que eles discordavam. Gabriel os amava, o que não era vantagem alguma posto que a forma de amar de Gabriel era totalmente deturpada, já Michael os desprezava. Tanto poder usado para correrem, treparem e fazerem filhotes, nada mais que isso.
"Ela vem ou não?" Michael disse sem tentar esconder sua ansiedade por ver Samantha. Olhar nos olhos verdes de Livie e não ver a idiota e fraca garota, mas sim a poderosa Samantha. Ele ajudou nisso, afinal, ele fez o embrião que mais tarde se tornou Livie.
"Não, ela não vem." Michael olhou para Gabriel. Ele nem se deu ao trabalho de se mostrar culpado, afinal ele não sentia culpa, ele não sentia nada.
Brass se serviu da carne que ainda estava no fogão e se sentou em outra cadeira ao redor da mesa. Mais carne do que eles podiam comer, mais uma cadeira à mesa. Tudo dizia que a conversa seria a três, mas Samantha não comeria tanta carne.
Brass mastigou a carne, balançando a cabeça satisfeito, Michael olhou para Gabriel que sorriu.
"Candid me ensinou o ponto certo." Ele disse Brass sorriu com os lábios fechados, ainda mastigando.
Candid! Candid era um monstro, os três eram, mas enquanto Simple era temido e Honest respeitado, Candid era amado. Todos gostavam dele, das piadas, do sorriso travesso, das pegadinhas, das coisas engraçadinhas que ele dizia. Ele estava sempre cozinhando, sempre carregando e consertando coisas. Tudo o que ele fazia era com excelência. E passava despercebido. Sua força descomunal, por exemplo, ninguém prestava atenção. Michael se lembrava de quando ele retirou uma de suas unhas. Os outros dois foram meio hesitantes, ele não. E eles eram muito mais novos que agora.
"O que quer, Brass?" Michael perguntou, Brass continuou comendo, como se não tivesse pressa alguma, como se não duvidasse de que Michael fosse fazer o que ele queria. Era uma boa estratégia, mas Michael entendia muito desse jogo. Brass estava numa situação de poder, mas o verdadeiro poder era dele, Michael, pois ele não queria nada de Brass. Brass era quem precisava de Michael. Postura de mal, ameaças ou até agressão, não mudariam isso.
"Bom. Eu vou me deitar. A comida não desce muito bem, eu preciso repousar. Boa conversa." Gabriel saiu da cozinha. Brass continuava comendo, Michael esperou pacientemente. Ele não seria psiquiatra se não fosse paciente, calmo e persistente.
Brass se recostou na cadeira, suspirou e encarou Michael. Ele era bonito. Não a beleza forte dos Novas Espécies, ele tinha uma beleza clássica, seus traços era simétricos, perfeitos. Maçãs do rosto altas, queixo quadrado, lábios grossos, nariz achatado, mas ainda assim um belo e perfeito nariz. Os olhos eram outra maravilha, marrons, quentes, exatamente como o nome dele.
"Você sabe por que está aqui. Então fale." Ele disse e esperou.
Michael se sentiu um pouco decepcionado. Ele esperava pelo menos uma ameaça. Brass não podia ser tão ingênuo ao achar que bastava mandar e ele cantaria como um pardal. Brass era inteligente.
Ele ergueu as sobrancelhas, Michael limpou a garganta.
"Eu não sei sobre o que quer que eu fale, Brass." Ele não disse nada. Olhou para suas mãos, para seus dedos, para as suas unhas. Michael se ajeitou na cadeira. Ele sabia o quanto doía. Ele não estava a fim de passar por isso, mas ele não falaria nada. Ele tirou as luvas, estendeu as mãos na mesa e as aproximou de Brass.
"Eu não sei o que você quer saber, Brass. Mas não tenho como fugir de você." Ele disse, Brass sorriu.
"Isso é brincadeira de criança, Michael. Nem os trigêmeos fariam isso com você de novo. Por que eu faria? Só fale." Ele tinha um ar tão simpático! Mas a veia sombria em sua alma estava ali no fundo do bronze quente das íris dele.
"Por que eu faria isso?" Ele perguntou.
"Por causa de Evelyn." Brass disse e Michael engoliu em seco. Gabriel! O desgraçado o tinha traído! Como ele pôde? Michael era a última família que ele tinha, como seu irmão o traiu dessa forma?
"Vocês não a matariam." Era verdade, ele viu nos olhos de Brass. Evelyn era inocente, era só uma menininha. O próprio Michael não se aproximava dela, para não a contaminar. Ela era doce, boa e pura.
"Não. Mas a mãe dela e o padrasto não são flor que se cheira, nas palavras de Kat. Com uma ligação, o FBI pularia no pescoço deles, e a sua linda Evelyn estaria num abrigo. Sabe a probabilidade de uma fêmea humana de onze anos ser adotada por uma família boa? Entre sua filha perder a vida confortável e, bom, sofrer num abrigo ou orfanato, onde muita coisa poderia acontecer e um dos meus filhotes morrerem, o que acha que eu faria?"
Michael respirou fundo, tomando seu tempo. Ela não morreria. Talvez ele pudesse arranjar alguém para adotá-la, alguém de confiança, ele poderia...
Não. Preso em Homeland ele não poderia. Não havia como se comunicar com ninguém e mesmo se fosse possível, não havia ninguém.
Michael pensou em suas primas em abrigos, em Ann sendo prostituta, em Mariah doente. Michael pensou na família da mãe de Evelyn. Traficantes. O pai já tinha morrido, a mãe dela tinha sumido. Só os primos traficantes.
"Samantha quer um bebê Nova Espécie. Um em que ela possa ser implantada e que cresça criando discórdia entre vocês, os separando, até que as novas gerações possam se tornar corruptíveis como os humanos. Ela quer os usar com um exército. Um exército imbatível, onde os generais sejam todos implantados." Ele disse, mas Brass sorriu.
"O plano dela não me importa. Isso é impossível. Eu quero saber como tirar o chip, ou seja lá o que implantaram em Livie. Só isso. Não me importam os delírios de dominação do mundo dela." Brass disse e isso balançou Michael. Brass era inteligente o suficiente para entender que um plano como esse, ainda que parecesse impossível, era um perigo. Focar numa coisa ínfima como a vida de Livie era menosprezar o mal maior, a implosão da sociedade deles.
"Você parece acreditar que ela seja capaz disso, mas eu estaria cortando o mal pela raiz. Eu quero livrar Livie e por tabela matar Samantha. Resolver o problema. O plano idiota dela, acaba com ela."
Michael se levantou. O lugar era frio demais, seu nariz estava congelando.
Brass acreditava piamente no que ele disse ou estava se fazendo de tolo? Ele suspirou. Samantha se decepcionaria com ele e isso não era bom, mas ele não podia deixar Evelyn sofrer, ela sim era tudo o que ele tinha.
"Angus McKay. Norte da Escócia. Ele implantou Livie, só ele pode reverter o processo, se for possível, é claro. Eu acho que não." Brass sorriu e se foi.
Michael ficou olhando ele descer a encosta, a boca aberta.
Brass não podia ser tão inocente poderia?
Ele abriu o quarto onde Gabriel dormia e o sacudiu.
"Que porra foi aquela? Que merda você fez?" Gabriel o lançou longe, ele bateu as costas contra a parede e caiu de cara no chão.
Gabriel vomitou todo o conteúdo de seu estômago, de forma dolorosa. Ele se levantou, estava nu. Michael se sentou no chão e o observou limpar todo o vômito. O cheiro era nauseante, Michael quase vomitou também.
Quando terminou, Gabriel se sentou na cama, fraco. Era estranho, pois Gabriel estava forte, seu corpo estava perfeito. Mas ele custava para respirar.
"Gabriel! Gabriel?" Michael se levantou do chão.
"Não grite, seu idiota! Sabe quanto tempo demora para que eu possa comer? Três malditas semanas! Só por isso valeu a pena eu ter te traído." A voz baixa dele, lembrou Michael de seus ouvidos sensíveis. Ele vestiu uma camisa e uma calça, de malha, leve. Ele precisava do frio, ele era como um cadáver num necrotério.
"Não é possível retirar o implante. Não há nada que faça McKay tentar isso." Michael disse. Brass era muito inteligente para cair nessa.
"Esse é o seu problema, Michael. Você quer saber tudo, quer entender tudo."
"Eles vão apenas perder tempo e Samantha vai me matar quando fracassarem." Ele disse.
Ann devia ter morrido de um infarto fulminante, aquilo era doído, uma morte rápida, mais intensamente dolorosa. E era isso que o esperava.
"Samantha não vai matar você. Você pode ser útil em algum momento." Gabriel disse, voltando a se deitar. Ele parecia com dor.
"Eu vou avisá-la." Gabriel fechou os olhos.
"Sim, faça isso."
"E vou contar a sua participação nisso." Michael o ameaçou.
"Como quando eu fiquei com a garota que você queria? Ela apenas riu e disse que a garota estava certa em me escolher, eu sempre fui melhor que você em tudo." Ele sorriu. Gabriel estava longe de qualquer ameaça.
"Como Brass conseguiu que você falasse de Evelyn?" Ele abriu bem os olhos.
"John." Ele fechou os olhos e se virou para a parede, encerrando a discussão. Gabriel amava John. Ele era como um filho para ele, John até mesmo se parecia um pouco com Gabriel, ele era um gênio. Se Brass ameaçasse impedir Gabriel de ver John, talvez a única alegria que Gabriel tinha em sua vida miserável, Gabriel faria o que fosse.
"O amor não deixa espaço pra mais nada, irmão." Gabriel disse sem se virar. Michael ouviu o barulho do jipe, Jericho estava ali para levá-lo.
"É, parece que não." Michael disse e saiu.

FILHOTES DE VALIANT - PRIDEOnde histórias criam vida. Descubra agora