Capítulo 24 - Queimando o jardim

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As coisas mudaram nos últimos dois anos.

Ela sempre foi conhecida como aquela que poderia suportar coisas que odeia como café com açúcar, beijos no rosto e pessoas abarrotado sua roupa, mas algo mudou nos últimos dois anos.

Antes, ela era sempre aquela que acordava muito antes do necessário, deixava tudo sempre pronto no dia anterior e não que não deixava nada em sua vida acontecer naturalmente. Ela era aquela com tudo, milimetricamente, calculado para que fosse perfeito. Porém, isso mudou nos últimos dois anos.

Agora ela dorme até o último segundo possível, às vezes sai sem pentear os cabelos e não entende as próprias anotações. Mastiga mais chicletes do que escova os dentes e fuma três cigarros a cada refeição do dia, às vezes o cigarro é a própria refeição. Sim, as coisas com certeza mudaram nos últimos dois anos.

Há dois anos, ela não perdia nenhuma discussão. Sabia debater sobre tudo, era a dona da razão. Agora, não é que deixou de ter argumentos, mas os tópicos que foram ficando mais difíceis em uma velocidade desproporcional à que ela consegue aprender.

Assistir seu mundo mudando totalmente não foi algo bonito e satisfatório. Seus pais prometeram um nível de diversão que existiu apenas nos primeiros 6 meses desses dois anos. Aquele foi o seu êxtase de felicidade. Tudo era novo demais. As pessoas, os lugares, as motivações e até o céu parecia mais azul do que era antes. Depois, a realidade caiu sobre seus ombros e se tornou cada vez mais pesada.

Foi em junho, dois meses antes do seu aniversário, que tudo mudou completamente.

Acordou atrasada, prendeu os cabelos com pressa, e gritou os nomes de seus irmãos mais novos no instante que deixou o seu quarto.

Saiu sem se despedir dos pais, não tomou café da manhã e não carregou nada para fora de casa além de sua bolsa preta com as pasta de desenhos e folhas impressas para estudar para a prova que teria às 10h, um rosto descontente e todo o desânimo para o dia que havia se tornado quase um melhor amigo.

Ela chegou atrasada para a aula das 8h porque estava fumando do lado de fora ao lado de pessoas que não eram suas amigas e um céu que já não parecia tão azul. Ela odiou cada segundo das horas que passou dentro do prédio com ar-condicionado tão frio quanto as pessoas lá dentro. Estudou para a prova durante a primeira aula, e mesmo assim sabia que não seria o suficiente. Todo o mês de junho parece um inferno pessoal moldado para ela.

Se tivessem contado como se sentiria, incapaz e cansada, com certeza ela teria optado por outro caminho. Agora, parece tarde demais, já se passaram dois anos e ainda faltam três.

A barriga ainda estava vazia quando deixou a sala da prova, tão descontente quanto quando entrou, e ela comeu mais dois cigarros.

Chamaram seu nome, a convidando para almoçar perto dali, mas ela recusou como sempre faz.

Um dia ela precisou cuidar dos irmãos mais novos quando ela só tinha 17 anos e inventou histórias para entreter os dois. Foi uma epifania comparar pessoas a flores, dizer a eles que precisavam escolher quem queriam como amigos e quem os ajudaria a cuidar do jardim de seus corações. Nenhum dos dois entendeu muito bem, ficaram perguntando qual era a flor preferida dela, e ela desistiu. Pensou que talvez quando fossem maiores, isso faria algum sentido. Ela trouxe a teoria para a sua vida, mas quanto mais vive, menos entende.

Parou no bar a 5 quarteirões de casa. Era um lugar seguro que sempre ia, sozinha, e gostava de estar ali. Ninguém lhe perguntava nada, sobre o futuro ou sobre o passado. Ninguém sabia o seu nome, nem a carreira dos seus pais. Aquele era um ponto da cidade onde ela conseguia, finalmente, ser ninguém.

Foi só uma cerveja de estômago vazio antes de voltar para o carro. Estava frio, bem frio, e as roupas que vestia estavam longe de ser o suficiente. O céu estava escurecendo depressa e a garoa era algo constante.

Ela só precisava dirigir dois quarteirões, virar à esquerda e dirigir mais três antes de entrar na garagem do prédio que é sua casa desde que nasceu. Não era nada comparado ao quanto ela já dirigiu pelas ruas de São Paulo, cruzando bairros e avenidas engarrafadas.

Mas, naquele dia, seria muito. Seria demais porque a falta de paciência era física e psicológica. O pensamento não se limitava ao lugar e a atenção não seguia as ruas. Ela estava em qualquer outro lugar, menos dirigindo dentro daquele carro.

Ela tentou virar à esquerda sem dar seta, mas o carro de trás quase bateu na sua traseira e a obrigou a continuar na rua. Ela xingou o outro motorista, mesmo estando errada, e jogou o carro com velocidade na entrada seguinte. Talvez se seu corpo estivesse funcionando, sua visão periférica não estaria tão ruim e ela teria visto a criança que vinha atravessando na faixa de pedestre exatamente no lugar que ela havia acabado de jogar o carro.

Com toda a velocidade da ação, a criança sumiu de sua visão quando o carro se perdeu para a esquerda e ela não teve força suficiente para segurar o volante.

O veículo subiu na calçada e a lateral esquerda do veículo arrancou os vidros da loja na esquina. Ele só parou quando, com força, estraçalhou sua frente no primeiro poste que encontrou. Foi tudo tão rápido quanto um piscar de olhos, mas barulhento com uma tempestade de ventos.

A garoa não deixou de cair só porque o drama em terra era terrível. O corpo da criança metros à frente, ensanguentado, depois de ser arremessado pelo carro. A motorista, com metade do corpo para fora do carro pelo vidro da frente, porque não acho importante usar o cinto de segurança estando tão perto de casa.

E, claro, duas famílias que jamais esqueceriam o dia 10 de junho de 2013.

⚢ Não Mate Borboletas Por Ela ⚢ [Completo]Where stories live. Discover now