Capítulo 45 - Escondendo tesouros

62 7 0
                                    

Giulia acordou com seu pai ligando.

Ela tinha ficado até as quatro da madrugada rolando na cama, surtando completamente, porque a primeira lista de aprovados da USP havia saído e seu nome estava nela. Passou em quarto lugar para jornalismo. O frio na barriga que sentiu não vinha de um sentimento só. Foi um mix de alegria e preocupação, orgulho de si mesma e pânico. Ela não mais um mês para decidir que fica no Brasil ou não, precisava se matricular se fosse ficar.

Giulia assistiu o celular vibrar até a ligação cair. Hélio tinha visto que ela foi aprovada, com certeza. Ela havia fugido para a casa da avó na tarde anterior justamente por isso. Não saber o que queria fazia com que não conseguisse tentar manipular o pai para o oposto, por isso ela precisou decidir. Giulia não contou sobre a universidade dos Estados Unidos, mas não conseguia esconder a lista da USP que estava na internet para que todos vessem.

Encarou seu rosto amassado no espelho circular do único e pequeno banheiro na casa da avó materna e começou a escovar os dentes no segundo seguinte. O celular continuava vibrando na pia bege enquanto ela o olhava de soslaio.

@Pinheiroslis: Vi seu nome na lista da FUVEST! Parabéns!!!

A mensagem do Instagram de pulou na tela do celular de Giulia.

@Pinheiroslis: Eu passei em biologia!

Foi só assim que Giulia se deu conta de que não tinha o número de Lisbete. Ela ignorou as mensagens e colocou o celular no bolso do short preto de tecido fino. Ela sentiu o cheiro de café tomar conta do seu olfato quando entrou na conhecida cozinha. O café estava coando, mas sua avó não estava lá. Ela olhou pela janela que essa estava molhando as plantas na frente da casa.

Alguns ciclos são difíceis de se identificar quando começaram ou terminaram, mas esse em específico era claro como água. Apesar de conseguir ver claramente a linha que separa o passado do futuro, Giulia ainda não aprendeu como se supera os sentimentos de cruzar essa linha. Ela cruzou, hoje às 4h20 da madrugada, quando tomou uma decisão. Sentia-se exausta, por ter dormido mal, mas também por todas as consequências que suas escolhas simbolizam. A possibilidade de, de fato, ficar no Brasil ao lado de Marcela, seu grande amor, e Hélio, seu pior pesadelo, foi crucial para que Giulia batesse o martelo. Mas dói, oh como dói, como apertar um cacto dentro das mãos enquanto anda em brasa quente.

Desistiu de comer. Sentia-se enjoada.

— Eu levo sim — respondeu a avó, enquanto se trocava no quarto. — Ela vai gostar de saber que a senhora lembrou dela. — Giulia colocou o cachecol de crochê que sua avó fez para a mãe dentro da mochila preta.

— Ficou tão pouco, filha.

— Foi o que precisava vó, mas eu volto depois. — Ela pediu benção antes de deixar a casa.

O sol era latente, deixou o rosto dela todo vermelho só de andar 15 minutos até a rodoviária. Ela praguejou o verão, mas tinha como piorar. Era final de janeiro, dia 24, e ela escolheu o pior dia para voltar à capital. A chuva estava lavando a cidade inteira quando Giulia chegou. Muitos alagamentos iam fazer com que ela chegasse em seu destino três horas depois do que tinha planejado. Era como um reflexo dela no ambiente. Estava chovendo dentro de Giulia.

Via-se assistindo a chuva forte na saída da rodoviária, enquanto esperava seu uber. Não tinha levado guarda-chuva, um grande erro, e se molhou um bocado antes de entrar no carro.

— Não vai dar pra passar aqui — avisou o motorista de bigode preto e boné azul claro. — Essa cidade é uma droga.

Existia um mar na frente do carro. Seria só cinco minutos andando se Giulia tivesse coragem. Ela já estava faminta e o cansaço físico batia com força.

— Tudo bem — disse sem pensar. Meio zonza, meio doente.

Doente porque nenhum louco sairia naquela chuva. Nenhum louco se enfiaria num lugar onde a água batia nas canelas enquanto se enxarcava por todos os lados. Nenhum louco, menos ela.

Giulia apertou o botão no interfone e disse o número do apartamento e o bloco, que sabia de cor. Disse que seu nome era Lisbete.

— Pode entrar — o porteiro disse, ela suspirou.

Giulia passou pelas duas primeiras portas e limpou a água pesando em seus cílios antes de atravessar o espaço descoberto até o hall. Viu Marcela saindo do elevador assim que entrou e apertou os polegares dentro das mãos. Tremia de frio enquanto molhava todo lugar onde passava.

— Você enlouqueceu? — Marcela tinha os olhos mais arregalados possível. Com os braços cruzados, ela olhou Giulia de cima abaixo e fechou os olhos. — Tá caindo o mundo, você não tava na sua avó?

— Já sabia que era eu — sussurrou.

— Sim, eu tô falando com a Lis no whats. O que aconteceu?

Marcela chegou mais perto, Giulia relutou em tocá-la porque Marcela estava seca. Ela colocou as duas mãos na cintura e tomou coragem.

— Eu não passei — Marcela interrompeu toda a sua preparação. — Mas... Eu vi seu nome. É por isso que veio aqui? — Giulia assentiu.

Marcela, tristemente, repetiu o processo. O rosto de Marcela começou a corar e ela encarou o teto, sua respiração tremeu mais que os braços de Giulia. Essa em questão abaixou o olhar. Queria falar, tinha que falar, mas verbalizar aquilo era aterrorizante.

— Eu disse pro meu pai que queria ficar. Falei pra ele que queria ir pra USP. — Giulia estava começando a ficar rouca. Marcela olhou a namorada com uma faísca minúscula de esperança, mas que logo desapareceu. — Ele quer que eu vá pra fora.

— Você sabia que isso ia acontecer — Marcela fez uma careta tentando esconder a frustração. — Tinha que me contar isso logo hoje? Logo depois do resultado?

— Não tem bom dia pra contar isso — Giulia argumentou. Ela, involuntariamente, deu três passos em direção à Marcela e segurou os cotovelos de seus braços cruzados. Ficou a encarando até que Marcela descesse o olhar até o seu. — Eu nunca vou ser feliz se estiver perto dele. — Giulia não sabia mais o que era água da chuva ou lágrimas em seu rosto. — Não importa o que me faz bem porque ele destrói tudo que eu amo. Ele vai destruir a gente se eu ficar.

O corpo quente de Marcela contra o seu foi o próximo sentimento de Giulia. Ignorando suas roupas pingando, Marcela enrolou seus braços fortemente ao redor do pescoço de Giulia.

— Desculpa.

Ela queria que Marcela dissesse que não havia nada pelo que se desculpar. Queria que ela dissesse que entendia e que apoiava, mas era egoísta de sua parte. Sabendo a dor que sentia sendo aquela que tinha poder de decisão, sabia também que a de Marcela era ainda mais profunda por não ter escolha. Giulia se contentou em se apegar ao abraço oferecido de Marcela, o colo que precisava, e chorou até soluçar, como uma criança.

Giulia não tinha certeza se essa era a escolha certa e a única forma de descobrir isso é vivendo. Viver longe de seu pai era uma prioridade para ela antes mesmo que Giulia conhecesse Marcela. Hélio já vinha ceifando seus sonhos desde que se entende por gente e esse sonho, Marcela, ela precisou guardar em um potinho longe para que ele nunca seja capaz de tocar. Como um tesouro, escondido em uma ilha deserta e debaixo da terra, que ela tem pavor que outras pessoas encontrem, mas que vai continuar sendo feito de amor e não de medos. Marcela não consegue e nem tem que entender que esse foi o maior ato de amor que Giulia já fez por ela. 

⚢ Não Mate Borboletas Por Ela ⚢ [Completo]Onde histórias criam vida. Descubra agora