3

7.6K 537 143
                                    

Eu reconhecia que, apesar da tragédia que tinha ocorrido em minha vida, ainda podia me considerar uma garota de sorte, pois quantas crianças na mesma situação continuariam indefinidamente naquele lugar, que apesar de ser bem administrado não era o substituto para um lar de verdade? Mesmo consciente disso tudo, senti-me estranhamente melancólica naquela manhã, quando fui levada até a sala da diretora do orfanato, onde Des e Anne aguardavam ansiosos. Foram-me mostrados meus novos documentos de identificação, e fiquei um pouco chocada ao ver que agora era real e definitivo, a partir daquele dia eu tinha um novo sobrenome que eu usaria pelo resto da vida.

Eu sei que não devia me sentir assim, porém foi como se um pedaço de mim tivesse morrido e jazia com meus pais. Pois a mudança de um nome no papel não muda realmente o que somos, acreditei que esse fato acrescentaria algo valioso em minha identidade, mas eu carregaria para sempre na minha formação o calor de uma cultura tropical, aquele jeito expansivo e comunicativo de meus pais, o cheiro dos temperos quando minha mãe cozinhava, a música que escutávamos, eram tantos detalhes que antes passavam despercebidos e agora me faziam doer o coração ao lembrar; sentia muita falta da sonoridade da língua portuguesa, ouvir e falar português era como sentir uma carícia no ouvido e nas cordas vocais.

E agora, cá estava eu, numa casa grande e bonita, vivendo com uma família inglesa, que, embora me tivesse recebido de braços abertos, ainda era estranha para mim, assim como eu ainda era estranha para ela. Como seria dali para frente? A assistente social que conversou conosco no orfanato nos explicou sobre um período de adaptação que viveríamos no início, o que poderia ser uma fase desafiadora, mas que, se todos estivessem dispostos a concessões quando necessário, sempre respeitando os limites de cada um, teria sucesso quase garantido. Sacudi a cabeça, tentando não continuar pensando nisso. Não importava aonde fosse ou que nome usasse, eu ainda era Camila, inglesa de nascimento, brasileira de coração. Embora ainda estivesse agitada diante de tantas novidades, lentamente senti meus olhos pesados e, sem sentir, adormeci profundamente.

Na manhã seguinte, acordei, abri os olhos e me espreguicei devagar na cama macia e fofa. Olhei ao redor, ainda sem acreditar que aquela nova vida tinha realmente começado, mas estava impaciente para saber como seria nossa primeira manhã em família. Joguei o cobertor para o lado, me levantei, abri a porta do quarto e percebi que o corredor estava silencioso e tranquilo. Fui até o banheiro escovar meus dentes e, assim que terminei, desci para tomar o café da manhã e só encontrei meu pai na cozinha.

- Bom dia, acordou cedo - disse, assim que me viu.

- Gosto de acordar cedo - respondi, e ele me olhou, surpreso.

- Verdade? Então, finalmente alguém nessa família, além de mim, tem esse hábito - comentou, brincalhão. - Seus irmãos estão aproveitando as férias para dormirem mais um pouco. - Eu apenas sorri levemente. - O que vai querer? - perguntou, abrindo a geladeira. - Temos suco, leite, pão, queijo, geleia e cereal.

- Suco, pão e queijo estão ótimos para mim. Obrigada.

Ele foi colocando tudo na mesa.

- Sirva-se à vontade, agora esta é sua casa também, o que inclui a geladeira. - Deu uma piscadela para mim, e eu sorri para ele.

Gostei muito daquele novo pai, ele me deixava sempre à vontade. Nós dois comemos em silêncio, ambos lendo o jornal. Enquanto ele se fixava nas notícias nacionais e internacionais, eu pegava o caderno com histórias em quadrinhos e de entretenimento. Esse padrão, que começou ali naquele dia, duraria por muitos anos, nos tornamos companheiros matinais, pois adorávamos comer aproveitando o silêncio da manhã, desfrutando dos poucos momentos de tranquilidade, antes de toda a família chegar fazendo barulho. Porque, como logo percebi, se tem uma coisa que os Styles faziam era falar, falar pelos cotovelos, verdadeiras metralhadoras verbais, e eu me tornei a Styles comedida, e meu pai adorou esse meu jeito.

- Qual a idade dos meus irmãos? - perguntei.

- Gemma tem quatorze e Harry onze - respondeu automaticamente, sem tirar os olhos do jornal.

- Então, agora sou a caçula? - retruquei, depois de pensar durante um tempo, já que eu tinha oito anos.

- Sim, você é nossa nova caçulinha, e isso vai ser muito bom pro Harry, sabe? - ele respondeu, erguendo a cabeça um pouco. - Ele já estava ficando muito mimado.

Enquanto acabava de comer, fiquei ruminando aquela informação, então talvez fosse esse o motivo para o Harry ter sido o único a me receber tão friamente. Talvez ele estivesse com ciúme de ter perdido sua posição de filho caçula, e fiquei preocupada.

uncontrollably fond // hs Onde histórias criam vida. Descubra agora