4

7.1K 529 334
                                    

Depois de papai sair para trabalhar, começaram as atividades normais da casa. Eram férias de inverno e o frio era intenso, a neve caía lá fora, e passamos o dia brincando dentro de casa e vendo TV. De tarde, mamãe preparou um delicioso chocolate quente acompanhado dos típicos biscoitinhos de gengibre.

- Quer jogar damas, Gemma? - perguntou Harry, ainda de boca cheia.

Gemma tinha acabado de atender uma ligação e estava ao telefone, conversando animadamente com uma amiga, por isso apenas lhe fez um sinal para que Harry se afastasse. Ele olhou rapidamente para mim e depois baixou os olhos, carrancudo. Fiquei indecisa, se me oferecia para brincar com ele, mas por fim resolvi ser corajosa.

- Sei jogar, se você quiser brincar comigo. Ele me olhou surpreso por um momento e, depois, sacudindo os ombros, respondeu:

- Pode ser.

Sentamos de pernas cruzadas no carpete da sala, de frente um para outro, com o tabuleiro entre nós. Aquela foi uma ótima oportunidade de poder olhá-lo mais de perto, sem parecer literalmente enfeitiçada por ele. Observei seu cabelo liso e cheio, que caía numa franja grossa em sua testa pequena, enquanto as sobrancelhas faziam um arco perfeito sobre seus olhos verdes. Reparei que ele tinha cílios cheios e longos, na verdade os cílios mais compridos que já havia visto em um homem até então - para matar qualquer mulher de inveja. Continuei a observá-lo: suas bochechas eram altas e bem marcadas, traço que tornava seu rosto bem masculino, e continuando minha exploração visual cheguei numa boca rosada e perfeita, que não era nem grande nem pequena demais. Não sei por que, mas achei que o formato de seus lábios lembrava um morango, com aquele lábio inferior ligeiramente mais gordinho e carnudo. Descendo mais o olhar, cheguei ao queixo fino, talvez um pouco fino demais, mas que combinava com o restante de seus traços e criava um equilíbrio nas suas formas.

Sem graça, percebi que tinha parado de jogar, para ficar encarando-o, e tratei logo de voltar a olhar para o tabuleiro, procurando disfarçar e me concentrar na minha primeira jogada. Modéstia à parte, eu jogava bem, porém facilitei para que ele ganhasse a primeira partida. Não achei muito sábio humilhar, logo de cara, alguém que poderia me achar uma possível rival de sua posição na família. Seguiu-se, então, uma sucessão de partidas, e percebi que ele também era bom jogador. Em determinado momento, quando me concentrava num possível movimento, ergui os olhos de repente e peguei-o desprevenido, olhando-me atentamente; ele procurou disfarçar fechando a cara e baixando os olhos para o jogo, mas em seguida disse, baixinho:

- Gosto dos seus olhos.

- Meus olhos? - perguntei surpresa e confusa.

- Sim, são diferentes - ele respondeu, mordendo os lábios.

- Como assim? - quis saber, erguendo uma sobrancelha.

- Ah, todos aqui em casa têm olhos verdes, então é bom ter uma cor diferente para variar - ele respondeu, corando e sacudindo os ombros.

- Acho tão comum, de onde vim à maioria tem olhos Castanhos - comentei, dando de ombros.

Ele ergueu o rosto e olhou pra mim com atenção.

- Abre bem os olhos.

Franzi a testa, achando aquele pedido muito estranho, mas acabei atendendo.

- Mas eles são castanho claro, meio dourados, mais para mel - disse, e enquanto ele analisava, pisquei os olhos, nervosa, não estava acostumada a um menino me olhar tão de perto, ainda mais aquele.

Por fim, resolvi olhar também nos olhos dele e suspirei, ao mergulhar num mar verde. Encaramo-nos, olhos nos olhos, e novamente senti aquela doce emoção que percebi quando nos vimos pela primeira vez, aquela mistura de suave espanto, misteriosa fascinação e magnetismo inexplicável. E, junto com essas emoções, vinha uma sensação de vergonha e culpa. Alguma coisa estava errada, não deveria desenvolver esses sentimentos. Não por ele. Eu o fitava, sem saber se ele poderia estar se sentindo da mesma forma, pois sua expressão era indecifrável, talvez um pouco tensa, pela maneira como ele contraía a mandíbula. De repente, Harry fechou os olhos e declarou, firmemente:

- Cansei de jogar. - E, para minha surpresa, começou a recolher as peças do jogo, levantando- se em seguida.

Pouco depois, nossa mãe apareceu na porta, usando um avental um pouco sujo de farinha, pelo jeito estava fazendo mais alguma receita.

- Harry, por que não chama sua irmã para ver TV no seu quarto com você? - ela sugeriu.

- Por que eu ia querer a Gemma lá? - ele rebateu, mal-humorado.

- Estava me referindo à Camila, afinal vocês têm quase a mesma idade.

- Ah! - exclamou sem graça, dando-se conta do furo.

- Não, mãe - disse apressada, antes que ele respondesse, já me pondo de pé. - Acho que vou para o meu quarto brincar um pouco.

E reparei no alívio evidente no rosto do Harry quando falei aquilo.

- Então, está bem - mamãe disse, saindo em seguida, provavelmente voltando para a cozinha. Corri para o meu quarto, passando direto por Harry, mas evitei olhá-lo. Lá chegando, entrei esbaforida, fechei a porta respirando fundo e coloquei a mão no peito, como se dessa forma pudesse conter aquela estranha sensação de abandono.

uncontrollably fond // hs Where stories live. Discover now