c a p í t u l o 0 3

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Quando desembarcamos no Heathrow já passava das dez no horário local, e, ao contrário do que eu desejava, uma hora de diferença não fez o tempo correr mais rápido do jeito que eu precisava e estava ficando irritada por me sentir presa numa realidade que era totalmente absurda. Mesmo depois de ter passado quase três horas debaixo do chuveiro tendo uma crise de choro que me deu a sensação de ter secado por dentro, não tinha conseguido assimilar cem porcento a confusão que estava acontecendo ao meu redor. Minha mãe, como sempre, parecia não notar qualquer coisa que acontecia fora da sua bolha de amargura e pela primeira vez em muito tempo eu me senti grata por isso. A última coisa que eu queria é ser chamada de idiota por não ter percebido o que acontecia bem debaixo do meu nariz com minha suposta melhor amiga e um quase namorado ou ser chamada de vagabunda por ter perdido a virgindade sem estar namorando sério por pelo menos um ano.

Apesar do voo ter sido tranquilo, acho que nunca me senti tão incomodada por estar dentro de um avião como me senti desde o primeiro passo que eu dei em direção ao meu lugar. Durante duas horas e meia eu fiquei acordada encarando o banco da minha frente como se fosse a coisa mais interessante que eu já havia visto. Tentei ignorar o mundo ao redor e me tranquei dentro da minha própria cabeça para evitar que meus pensamentos me traíssem e me levasse de volta para um dos momentos mais humilhantes da minha vida. Não conseguia parar de me perguntar como eu não notei antes e não entendi porque Jessica não disse que estava ficando com Victor bem antes de nos conhecermos. Eu nunca teria ficado com ele se soubesse que eles estavam juntos, eu não era esse tipo de garota e isso me deixava mais revoltada cada vez que suas palavras ecoavam na minha cabeça. Tive pouco tempo para pensar mas tenho total consciência de que estava mais chateada pelo fato de ter sido feita de idiota e não pelos sentimentos que eu mantinha pelos dois. Parece que meu coração já estava acostumado a ser pisado por pessoas que deveriam cuidar dele.

Quando finalmente pegamos nossa bagagem e encontramos o carro alugado que nos esperava senti o aperto em volta do meu pescoço diminuir, era como se eu tivesse deixando para trás toda a merda que eu vivi, como se todos os sentimentos confusos que estavam me levando a beira da loucura horas antes estivessem sendo tirados de mim com o vento gelado que chicoteava meu rosto feito uma mão me dando um tapa para acordar e ver que eu estava dando importância demais para quem não valia isso tudo. Empurrei Jessica e Victor para dentro de uma caixa e escondi no canto mais empoeirado da minha cabeça e respirei fundo algumas vezes permitindo que lágrimas quentes rolassem por minhas bochechas geladas. Esse capítulo estava sendo fechado, e, apesar de saber que muito provavelmente teria uma recaída ou outra, tentei ficar firme e acreditar que poderia cumprir a promessa que fiz a mim mesma enquanto mordia meu antebraço para não gritar. Eu iria cuidar de mim, enfiar minha cara nos estudos e esquecer que o amor existe, eu não precisava dele de qualquer forma.

Acordo dos meus devaneios quando minha mãe me grita quando está entrando no carro, limpo o rosto sentindo a prova da minha promessa protestar pelo contado brusco da manga do casaco. Ando o mais rápido que consigo enquanto carrego duas malas e uma bolsa de lado. Arrumo minhas malas junto com as de minha mãe e vou diretamente para o banco do passageiro e reparo que minha mãe já ligou o aquecedor no máximo mas não falo nada. Coloco o sinto de segurança em silêncio, tentando não fazer nada de errado para evitar que ela brigue comigo, estava começando a ficar cansada de ser tão repreendida por tudo e nada. Quando pegamos a estrada sinto um calafrio sacudir meu corpo e fico tensa, é tudo tão familiar que quase ouço sua risada dentro do carro. Olho para minha mãe e vejo que seu rosto está com uma expressão estranha e percebo na hora que ela está tendo a mesma sensação que eu: tudo havia mudado mas ainda parecia o mesmo.

A sensação de controle e tranquilidade sobre meus sentimentos foram se esvaindo como a areia escorrendo numa ampulheta. Aos poucos estava sendo acariciada por lembranças tão doces feito chocolate e quase pulo para fora do carro quando levo um soco da lembrança mais amarga de todas: o dia em que tudo mudou, o dia em que ele se foi por minha causa. Fecho os olhos com força e tento ignorar tudo ao meu redor mas é forte demais para conter. Quando nos aproximamos do centro de Kierstenside, e passamos na frente do lugar em que ele foi assassinado sinto meu estômago dar uma volta dolorosa e quase vomito no tapete do carro caro. Minha mãe dirige calmamente enquanto eu consigo escutar a arma sendo engatilhada e apontada para mim enquanto meu pai dizia que tudo ia ficar bem. Sem querer ouço o som do tiro ecoando com o vento e sinto o peso do seu corpo caindo encima de mim para me proteger dos três tiros que foram disparados em minha direção. Ainda sinto o sangue escorrer de seu corpo e me deixando suja, ainda ouço sua última respiração ao pé do meu ouvido e a dor em cada palavra que ele me disse.

Chega!

Grito batendo minhas mãos em meus ouvidos enquanto recito a fórmula de uma equação de segundo grau tentando esquecer o tom de sua voz já fraca soando em meus ouvidos. Minha mãe para o caro bruscamente e eu mal consigo soltar o cinto e abrir a porta antes de colocar para fora toda a água e amendoim que comi no avião. Quando consigo acalmar minha respiração e controlar as ânsias de vômito que fazem meu corpo sacudir de cima à baixo, me encosto na roda do carro e começo a chorar. O peso da culpa quase me afundando no asfalto. Limpo a boca com a manga do casaco e entro no carro e afivelo o cinto tentando respirar com calma. Minha mãe não fala nada quando troca a marcha e volta para a estrada e eu sei que ela está só esperando o momento certo para me atacar, e isso me deixa esgotada. Quase não reparo quando ela aperta um controle no quebra sol do carro e um portão automático se abre aos poucos revelando uma casa grande demais para duas pessoas. Ela estaciona o carro na frente da casa e desce do carro sem se importar se eu saí junto ou não.

A porta de madeira é aberta com facilidade e eu desço do carro tentando andar devagar enquanto o mundo gira em todas as direções possíveis, pego minhas coisas e fecho o carro com um pouco mais de força que o necessário. Me arrasto para dentro da casa e me sinto num freezer quando olho ao redor da sala branca com detalhes cinza. Não falo com minha mãe quando subo as escadas e encontro meu quarto, jogo minhas coisas perto de algumas caixas que já estão empilhadas numa porta que deve ser o banheiro. Me jogo na cama me enrolando num edredom fino demais para aquecer o frio que vem de dentro de mim. Fecho os olhos e tento dormir enquanto choro lágrimas que parecem ser feitas de ácido e fico me perguntando o motivo disso tudo ter acontecido logo comigo.  Eu queria recomeçar, viver como uma garota normal como todas as outras mas estava sendo arrastada à força para os braços do meu passado que me esperava com um sorriso macabro enquanto segurava uma faixa dizendo que tinha sentido minha falta.

The Only Reason - HSWhere stories live. Discover now