c a p í t u l o 0 5

996 86 17
                                    

O despertador berra do outro lado do quarto e levanto para desligá-lo e começar a me arrumar para o meu primeiro dia de aula. Assim como no outro colégio, o daqui exige o uso de uniforme: saia xadrez escura, sapatos pretos, meias ¾, gravata preta, camisa branca com o emblema do colégio do lado direito do peito com um blazer e boina (opcionais) pretos. Não duvido que minha mãe tenha escolhido o colégio mais caro da região para poder dizer por aí que sua filha estuda no melhor colégio de Kierstenside, como se ela realmente se importasse com a minha educação. Tomo banho e lavo os cabelos sem pressa já que consegui levantar na hora certa e tenho um pouco mais de tempo para tentar programar o meu dia. Escovo os dentes, passo hidratante e desodorante antes de sair do banheiro já com calcinha e sutiã e visto o uniforme na frente do espelho do quarto me sentindo bem mais confortável do que achei que ficaria.

Passo perfume e penteio o cabelo e deixo molhado mesmo, não estou com paciência para ligar o secador. Pego minha bolsa e confiro se está tudo no lugar antes de pegar o celular e meu fone. Saio do quarto e respiro fundo sentindo um frio na barriga que já conheço tão bem, o primeiro dia de aula nunca é tão bom. Nos últimos cinco anos eu troquei de escola umas nove vezes, já tive muitos primeiros dias e o único que achei que tinha sido bom, não foi no final das contas.

Me arrepio inteira só em pensar na possibilidade de encontrar uma Jessica e Víctor 2.0 aqui. Acho que no final das contas eles me marcaram mais do que eu tinha percebido, e pensar nisso tem doído um pouco mais cada vez que lembro de tudo. Tropeço na escada e volto a prestar atenção nos últimos degraus e no cheiro divino que está vindo da cozinha. Niara, a nova cozinheira está cantarolando baixinho e mexendo na geladeira quando entro na cozinha. Ela é um anjo de ébano que chegou nessa casa antes mesmo da gente e eu já estou apaixonada por ela, não só pelo tempero na cozinha mas pelo jeito que me tratou desde que nos vimos pela primeira vez. Ela é mãe de quatro filhos e tem duas netas, Abby e Tate, duas menininhas adoráveis que têm os seus olhos. Ela para de mexer na geladeira e me olha com um sorrisão antes de me abraçar e desejar bom dia, retribuo o abraço e o bom dia antes de pegar uma tigela com frutas e granola e sentar em frente a bancada de mármore escuro.

- Animada para o primeiro dia? - Niara pergunta enquanto vira tiras de bacon na frigideira.

- Não sei, estou mais preocupada do que ansiosa. - Falo e me sirvo um copo de suco de morango.

- Preocupada com o que? Você vai se dar bem. Não tem que ficar preocupada com o que vão pensar de você, com o tempo a gente aprende que aos olhos de quem é ruim, chocolate vira lama. - Ela diz me olhando e eu sorrio com suas palavras.

- Não estou assim porque estou pensando no que vão achar de mim, é que eu já tive umas experiências ruins com amizades e por não saber ler as pessoas, agora estou morrendo de medo de me machucar, eu não vou aguentar se isso acontecer outra vez. - Falo mexendo nas frutas distraidamente e ela sorri calorosamente e sinto um peso sair do meu peito. Niara desliga o fogo e vem até onde estou sentada e tira a tigela de frutas da minha mão para segurá-las.

- Melanie, eu não sei o que você já passou nessa vida, ninguém além de você sabe, a única coisa que eu consigo ver é uma menina doce que está quebrada por dentro por algum motivo, eu nem estou aqui a tanto tempo e já notei isso quando coloquei meus olhos em você. Eu já estive num lugar parecido com o que você está agora, com medo do amanhã e precisando desesperadamente ser forte para que não usassem minha fraqueza contra mim. - Ela fala e meus olhos se enchem de lágrimas. - Você vai se machucar, vai se reerguer e voltar a cair outra vez, a vida é assim. Você não pode, de jeito nenhum, deixar que o medo vença você, tem muita gente lá fora esperando para conhecer a menina maravilhosa que eu sei que você é. A única pessoa que impede que isso aconteça é você mesma, não estou dizendo para você sair de peito aberto e entregar seu coração numa bandeja para qualquer pessoa, não mesmo. Só estou tentando dizer que você não precisa ter medo de cair e ralar os joelhos, uma hora ou outra, eventualmente, isso vai acontecer e você precisa entender que é normal, tudo bem? - Ela diz e eu caio no choro encostando minha cabeça no seu ombro enquanto ela me abraça e fala palavras de conforto passando a mão nas minhas costas. Me afasto devagar e seco os olhos com as mãos antes de encará-la outra vez.

- Eu não sei fazer nada disso do que você disse, Niara. Eu tento, só Deus sabe o quanto, ser forte e tentar mudar o rumo de tudo mas eu só consigo ficar mais perdida ainda e cada vez mais sozinha. Há uns dias atrás eu descobri que o primeiro garoto que eu realmente me interessei ao ponto de me entregar a ele, estava namorando uma garota que se dizia ser minha melhor amiga mas no final das contas só queria a merda do dinheiro que minha mãe têm. Estou tentando, de verdade mesmo, não deixar isso me abalar mas estou tão perdida, tão cansada. Mudei de escola e tenho que me virar para conseguir me adaptar para não ser reprovada e sujar mais ainda meu histórico escolar, não vejo minha mãe desde domingo a noite e ela nem se importa se estou bem ou não. Estou me sentindo patética, assustada e sozinha.

- Essa menina merece uns tapas e esse menino também, onde já se viu fazerem isso? A vida vai ser cruel com eles, você pode ter certeza, gente ruim só aprende com a vida. - Ela fala e termino de beber meu suco. Olho para o relógio na parede e vejo que ainda tenho vinte minutos para me recompor antes de sair de casa. - Às vezes a vida é um pouco amarga, sabe? Mas só é assim pra ensinar a gente como dar valor aos momentos doces e aproveitá-los ao máximo. Eu não entendo os motivos da sua mãe para ser assim, já tentou conversar com ela sobre isso?

- Não, nós não conversamos muito, só se for extremamente necessário. Nem sei como chegar até ela e falar sobre o que aconteceu no meu dia ou algo assim. Há anos que não sei o que é dizer que a amo ou escutar que sou amada. - Falo sem graça e ela franze o cenho e passa as mãos no rosto e fica me encarando de um jeito que parece que ela está lendo cada sentimento que eu deixo guardado em algum lugar dentro de mim.

- Ah, menina, eu não faço ideia do que aconteceu com vocês. O que eu sei é que a vida nunca é fácil e que no final tudo se acerta. - Ela diz com um sorriso e me dá outro abraço, sinto a ansiedade e preocupação se dissolverem dentro de mim feito açúcar no café. Niara é tudo o que eu precisei a vida toda: carinhosa, receptiva e atenciosa, em tão pouco tempo eu já tinha certeza que ela seria o meu porto seguro. Solto uma lufada pesada de ar quando ela se afasta e volta a mexer na geladeira, provavelmente preparando o café da manhã da minha mãe. Digo tchau e vou correndo para o meu quarto para lavar o rosto e escovar os dentes outra vez.

Saio de casa e sinto meu rosto pegar fogo de raiva quando vejo um carro preto e um homem vestido de terno que abre a porta traseira do carro quando me vê. Quase dou meia volta tamanha fúria mas me contenho e dou bom dia antes de entrar no carro. Fico puta da vida quando essas coisas acontecem, sei que ela não está fazendo isso por mim, ela só não quer que alguém me veja indo de transporte coletivo ou a pé para a escola. Coloco os fones no celular e aumento o volume no máximo enquanto procuro uma música tão alta que possa abafar meus pensamentos que estavam tranquilos há menos de dez minutos. Mais um dia de aparências, mais um dia sendo ignorada, mais um dia de confusão emocional, mais um dia que eu não tenho a mínima ideia de como vai terminar ou se no final vou ter vontade de estar viva para presenciar o próximo.

The Only Reason - HSOnde as histórias ganham vida. Descobre agora