Corrigindo a Dispersão

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       Ele era estrábico de um olho. Mas, após a cirurgia de correção, assim que começou a enxergar as coisas distintamente, cada qual em seu contorno isolado, deixou, com a abertura da porta da natureza, que o primeiro sentimento fixo se estabelecesse a respeito de si mesmo.

       Após tantos anos de turvação e sem contato algum com seus sentimentos, deixou que, bruta, ainda, lhe viesse a legítima raiva. Sim, sem pejos, acolhida, aceita, a raiva que o reunia, pois que era estável ao menos e se podia deter enfim em algo, levá-lo ao seu centro.

       Como o centro de alvo que flechasse certeiro e seus contornos se embaciando, diluindo, fora dos quais não admitia mais nada, ao menos por um tempo, eu diria, por seis meses ainda que se prolongariam por dois anos. Enfim a essência daquilo, o suprassumo do que então permitia-se ser depois da negação, depois da depressão, depois do medo.

       Evoluindo, subindo na escala das emoções, a inegável, pura raiva, que tinha aval para ser sentida e que não o deixava dormir por várias noites, ou em noites agitadas, entremeadas por um sufocante e súbito despertar, como se acordasse do sonho que poderia resvalá-lo de volta ao impreciso, ao vago. A raiva que poderia até sentir, crispando as mãos (as mãos tornando-se o centro dela), mas que jamais poderia ser expressa às demais pessoas, num grito ou num golpe de luta ou em alguma palavra que pudesse ferir, destruir os outros e a si mesmo. Ele tinha ainda muito amor por si mesmo e pelos outros e se sentiria muito infeliz se ferisse.

Seu sentimento jamais expresso exteriormente nele se trancava e com ele ia e refluía, nunca permanecendo estático para não gastar-lhe por atritos o coração, numa permanente tentativa de conservar a vida que tanto estimava, pela qual tinha afeição, tentando dela cuidar, proteger.

       E ia resolvendo a raiva, por exemplo, deixando-a vazar pelas pontas dos dedos, quando tomava da caneta para escrever seus poemas e histórias, ou pintar as telas com as pontas nuas e com uma delicada força. Aos poucos ia dando vazão à raiva, deixando aos poucos que fluísse como a purulência de uma chaga dolorida. Aos poucos ia deixando a raiva, e, antes da raiva, a dor, serem drenadas nos mínimos gestos das mãos, no serviço de carpinteiro que ele era, ao serrar a madeira e polir as arestas farpadas, onde, ainda por vezes, perfurava em mínima dor os dedos.

       Ele, neste trabalho, ia deixando-se vazar como de um pequeno açude e ia coleando como uma água delicada, vencendo obstáculos, contornando-os --- até que o trabalho das suas mãos transformasse a raiva em coisas belas e, ao oferecê-las à vista das pessoas, estas sequer notariam a fonte de onde vieram, o caos e o descomunal esforço que fizera para trazê-las à tona, as incoerências pretéritas dele.

       Do lodaçal de onde vieram, como que pela alquimia dele, nascia uma flor-de-lótus que só sabia mesmo, por inerente competência, ofertar um tão delicioso perfume da natureza.

       De suas inconsciências, pelo primeiro gesto de foco catalizador e de auto-conhecimento que foi a raiva, surgiu a beleza da qual não suspeitariam as origens mais feias, transmutadas por ele em seu heroico ato.

Entre Sombras e FrutosWhere stories live. Discover now