O Despertar e A Morte da Ingenuidade

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Esta história tocante, ocorrida há alguns anos e que muito me sensibilizou, começa assim:

Ele, Felipe, tendo à época dezessete anos, vinha distraidamente subindo a ladeira de seu bairro de cidade pequena. Estava totalmente imerso em seus pensamentos, que o acaloravam até, consolavam, como que dentro de uma bolha tépida, macia e trepidante.

Pensava, deste modo, em como as coisas do mundo eram opostas, mesmo dentro de si, que se julgava até ali tantos "Felipes". Que havia o quente e o frio, o claro e o escuro, o céu e a terra, o duro e o mole do coração, a intempestividade dele e a mansidão que às vezes tinha, que a vida lhe entregara, sem ele haver pedido. E, ao mesmo tempo, pensava que, nesses opostos, nessas dualidades, assim, de fora, não quereria nelas penetrar, não quereria ao meio delas se misturar.

E, além disso, continuava, havia os elementos da natureza, conforme lia nos pré-socráticos: Heráclito, Anaxímenes --- água, fogo, terra e ar; as disparidades entre os signos do zodíaco: Áries não combinando com Libra, pois o primeiro pensava primeiramente em si, em sua ígnea formação, e o outro, indeciso, tentava conciliar a partir dos outros. Gêmeos e Escorpião atritando seus éteres, já que Gêmeos era tão dúbio, tão esparso, nunca chegando ao fundo, e Escorpião, do fundo de suas brasas escuras, seu centro, com suas garras, queria reter algo de fixo para sentir-se seguro. Assim, quase fora de si, um personagem até, vinha Felipe subindo, quando...

Bem, quando 'aquilo' aconteceu. Explico:

É que, tendo subido toda a ladeira do bairrozinho de casas pacíficas, todas com suas grades e portões de tinturas tão parecidas entre si, ele chegou, enfim, à casa em reforma severa. À sua casa severa, onde sabia entrar, por uma pequena fresta de canto, e onde gostava ou não de ficar, por várias horas, durante aqueles dias daquele último ano. Sim, Felipe não saberia dizer se apreciava ou não a casa, embora nela ficasse, sequer as razões disso. Apenas ficava, num gesto automático, instintivo.

Dentro dela sentava-se então no banco de pilhas de tijolos e ficava, ficava. Esperava, esperava --- mas o quê?... Ele sequer se perturbava, reagia. Gostava, sim, do silêncio, do escuro e das gotas que caíam do alto do sobre-piso na superfície do latão de cimento. Gostava dos meandros das paredes úmidas e mofadas, de onde, dos pedregulhos e da cal, saíam as aranhas de patas gomosas e felpudas. Gostava do cheiro de terra batida, misturada à urina dos homens que ali trabalhavam, para irem depois aos seus lares se divertirem, distraírem-se em churrascos e cervejas. Quando passava em frente ao casarão, em dias de semana, lembrava-se de ouvir a canção sertaneja que se grasnava ruidosa do rádio de pilhas, a qual dizia algo mais ou menos assim, Felipe se ria: "Meu bem, você me deixou, mas me dê uma chance, um sim, uma palavra apenas, que eu vou te buscar..."

Então ele, lassamente se levantando do banquinho de tijolos, entorpecido, após ficar por horas ali mal contadas, mal como se saísse, mas como se fosse logo retornar, e sentindo o bafo quente e úmido impregnando-lhe os poros pela quentura que fazia do lado de fora, em meio ao odor de cimento, mofo, terra e urina, virou-se e deteve-se por um minuto no galão de cimento. E foi então que viu. Viu o que estava estampado no latão, desperto, e onde as gotas da grossa chuva haviam caído e de onde agora extravasavam. Viu, num susto tão grande que mal teve tempo de se conter ou ocultar o rosto. E aquela visão, ou melhor, percepção, se gravaria dentro dele por muito tempo ainda. De um gesto decisivo, como que para afugentar aquela miragem de si, revirando a aguazinha com a ponta do dedo médio, levantando-lhe a terra que a turvava, atirou-a com toda a força contra a parede.

Apressado, então, saiu do casarão, não mais seu, ó, nunca mais seu, em passos cada vez mais sôfregos para sua casa, que ficava tão próxima dali, dobrando-se à direita. Entrou pela porta da frente contendo os soluços e as lágrimas que se rendiam, sem que ele quisesse --- sem que ele houvesse jamais imaginado, pedido! Por que 'aquilo' havia acontecido?? --- e, sem dar "oi" ao pai, que lia calmamente o seu jornal na poltrona da sala, e à mãe, que fritava o peixe na cozinha, ambos estranhando, supérfluos, a atitude indisfarçável do rapaz, entrou em seu quarto e trancou a porta.

Sentou-se na cama e soluçou mais, abafando o choro no travesseiro de fronhas estreladas, o último da sua infância, as lágrimas esquentando sua face vermelha. Como contaria agora aquilo a eles? ele pensava aflito, com medo, fantasmas de pavor e Harpias debatendo-se dentro dele com suas patas, volteando-lhe a cabeça numa névoa densa, cinza. Pois o seu rosto, pela primeira vez, vira naquela poça mais escura. E, debaixo dos opostos todos com que forjara cauteloso sua vida, a fim de se aliviar, alentar, acomodar, aquele era ele de fato, Felipe Afonso dos Reis. Condenado às sombras fixas para sempre, mas aéreo ainda... E, deste fundo revolvido de terra e água parada começava a brotar um outro rosto, ele agora via. Um segundo rosto que, emergindo das sombras, o esperava, urgindo-lhe, pedindo-lhe que dissesse alguma coisa que ele jamais poderia dizer, realizasse uma ação que ele jamais conseguiria... Um rosto também úmido, bafejado, morno e pleno de vida, como o de um menino, como uma porta que ele jamais pudesse abrir.

Ele era enfim aquilo, aqueles dois rostos de sombra e pedinte, a cujas necessidades básicas, vitais, ele não saberia dizer como e nem por onde poderia atender, como se o famélico cadáver dele mesmo, de adulto que Felipe ia se tornando, nunca fosse morrer.

E havia Alexandre, chamando-o para irem 'aqueles lugares', sem que seus pais pudessem suspeitar! Aquele lugar o nauseava, pleno de bocas concupiscentes, calças coladinhas e blusas com brilhos e decotes de uma gente tão fria, apática, egocêntrica, que nada tinham a ver com ele!... E já terminara os pré-socráticos, que companhia tanto lhe deram, pensava, tentando se agarrar, armar numa estratégia; para onde, agora, lançaria sua seta?...

Ele, que se sentia confuso, perdido ao meio de si. Ele, a quem poderiam não amar, descobria, o homossexual, num mundo que o via (o via?), o reconhecia, e que poderia criticá-lo, julgá-lo, condená-lo. Um mundo por onde andaria solitário e que poderia até mesmo agredi-lo! Ele, o inconveniente, o sem-lugar, esquecido e cuspido pelos outros e por si mesmo, ele desprezava aquele reflexo que o chamava, o chamava, e que ao qual, hora ou outra, atônito, fatalmente atenderia.

Entre Sombras e FrutosWhere stories live. Discover now