Do Flerte

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       Pois de tantas nulidades havia amarrado sua vida, e agora um balão cafona estourava e via subir desenfreado para cair em qualquer porcaria de lugar. Que não visse o tal balão, o ferido, o apático, o sem humor.

       Preferia remendar com pano novo, apesar de todas as raízes de seus cabelos crescerem com tantas fezes. Como pudera ser tão leviano?, perguntava-se, cobrava-se até, Egídio. Mas sem exasperações. Aquilo era de fato esquisito, de pouco entendimento. Pessoas que vieram e foram; carros que passavam em diferentes direções. E o amigo que restava no peito mal nele cabia, o único, posto com medalhas numa espécie de altar ridículo. Por fim sabia que cremaria também o próprio altar, seus fingimentos, sua rapacidade. Tirara anos de sua vida, de sua seiva, o malandro --- de sua vida, por Deus.

       Quanto esta ainda lhe valia? A quem recorrer em seu silêncio maior do que os apitos, do que os guizos da rua, dos anos, sua idade de algum viço ainda, via, mas que já começava a declinar? Todas estas questões iam e vinham em sua mente, sem resposta conclusiva, como se, para entendê-las, ele ainda precisasse de décadas postas num dicionário, numa biblioteca. Os ratos, sabia, já a haviam roído e mais roeriam por graça divina. Via de perto o trabalho meticuloso deles de reduzir a celulose a pedaços pequenos, detalhados. Interessava-se pelos espaços, pelo que sobrou de útil. Nos furos também entremostravam-se nesgas do que havia sido verdadeiramente ela, a vida, seu sopro cálido, alentador. Até que dela gostava, os braços dela abertos e largando-o enfim ao mundo --- um mundo absolutamente a ser descoberto!

       Quanto mais andava Egídio pelos anos, menos queria saber de si --- o passado não lhe pesando tanta importância, o futuro era um halo aberto, uma porta larga, plena de ouro e esperança! Se contasse nos dedos das mãos poderia apalpá-lo, enfiar-se nele e se imantar de uma corrente elétrica branda, sutil. E seu presente não o daria a ninguém, seria ele mesmo o capitão de seu barco a singrar pelas ondas no jogo de não se chocar e se pôr a perder entre as rochas.

       O presente era um meio-fio, um gume agudo. Pagaria o preço por nele se cortar, calejar, lamber-se se fosse preciso, o sangue para remédio da alma. Ainda nua sua alma aguardava que lhe desse a mão para poderem ir deslizar pela galeria do mundo desperto, comum, dos vivos. Mas em sono também a notava, pondo-lhe a ponta de seus dedos frios sobre sua nuca --- e, no gesto hipnotizante, levando-o a dançar para um outro mundo, que jamais conseguiria classificar com sua mente. Se tentasse fazê-lo, sua alma, como um cão doméstico, poderia-lhe revelar uma face realmente assustadora e mordê-lo bem nos lábios que falaram demais, arrancando-lhe um pedaço.

       Deste modo aos poucos ia, entre os dois mundos, nunca sabendo se dormia quando se compenetrava em suas funções mais comezinhas, ou, se, quando roncava sobre o colchão de molas, devido à infeliz apneia, era de fato uma vida real que vivia, de fato concreta, porém em grau mais intangível. Ao despertar para o mundo, digamos, mais físico, lembrava-se de pôr em rolos de papeis as impressões tidas nas duas fases, sem entretanto fazer uma síntese delas.

       Pois sua síntese era uma tentativa que permaneceria lançando, aborrecido, por toda vida, uns dardos lançados no escuro. Ele seria sempre incompleto, porém sem quase notar a perna que lhe faltava: acostumando-se com a manquidão, como se tomasse a bengala e aprendesse sozinho, por dedução, a guiar a si próprio pelo salão amplo, pelo corredor na penumbra. Até perder a si mesmo e ir dar, como numa emersão, a um ponto outro desse oceano louco que era a vida e onde podia, por escolha: surfar, boiar, engolir a água e regurgitá-la; expeli-la de vez e depois nela se meter, emaranhar, transar, sem nunca deixá-la de vez, esta mulher atormentadora de malandro que, quanto mais rejeitada e maltratada, mais se aproxima e quer ficar, dar carinho, sentir a potência do macho.

       Mas não; trataria-a com carinho desta vez, mais surpreso e também com um certo orgulho e indiferença de homem que era. E o casamento se daria, mesmo em eventuais atritos e explosões, arestas quebradas de vez na tentativa de limá-las, pólvoras a lhe escorrerem dos dedos com o sangue de artífice que tentou a bomba mais perigosa para as conciliações e concessões do que podia manejar. E silêncios, muitos votos de silêncio quanto a ela, que, calada, apenas ficava olhando-o, atentamente, como uma menina olha para um pai muito velho e excêntrico na iminência de lhe contar uma história: "Vida-menina, também sei pôr-te para dormir", dizia para ela. "Como sei levá-la a passear no parque, na fazenda, e ensiná-la a pescar..." "Como sei dar comida aos pombos contigo, e olhar vitrines de lojas, escolhendo-te o brinquedo que mais queiras para te distraíres." " Como sei também ser obediente e escutar as lições que me passas, quando eu e tu sentamo-nos em frente à lagoa, à hora de o sol se pôr, e me revelares com teu hálito de anciã um verso, uma canção de violas, uns abismos tapados de remendos em tua boca, um silêncio de vidro nos olhos, na garganta pronta para me engolir!"

       Egídio então tecia seus elogios à vida, distanciando-se cada vez mais, até o ponto de subir tanto e vê-la em seu invólucro uno, cerrado, tocando com suas bordas o ar frio e infinito. Em torno do laço de seda cor-de-rosa, seu tampo dobrável, a fina caixa de papelão. Como era pequenina vista de cima, como era frágil!, num susto ele se dizia, quase despencando de vez do voo inominável. --- Como gostaria de tomá-la no corpo e aquecê-la, tão sozinha e tristonha ela parecia ser!

       A vida se lhe mostrava então com centenas de características, nomes próprios, nuances de brilhos e cores, intensidades, afetos, inconsciências, incongruências, contradições; humanidades; como se fosse um organismo próprio, com seus próprios arbítrios e vontades... Em um segundo (poderia ter contado no tempo do relógio de pulso de meio-cientista que era), se atrelava a ela novamente, perfurava-a como um pai ou um deus que pudesse realizar seu ofício de lhe insuflar vida, mais vida, para que pudesse se manter. Mais. Mais.

       Eternamente seria aquele coito, aquele tesão a lhe inflamar, sem que nunca sua alma pudesse dormir?... Parecia que encontrava o meio-termo entre as duas fases, de sono e vigília: Os dois mundos se comunicavam coerentemente, o eterno laço, o êxtase, o romance que nunca acabava, nunca acabaria, com ela, que se afigurava agora, por acaso, com trejeitos e vestimentas de mulher, o chapéu e a sombrinha. Até que, depois daquela fusão nuclear, indistintos já os dois, sem identidade, aquela visão se cerrasse no escuro, aos poucos, até acabar, deixando-o lânguido na cama. Quem sabe um dia se repetisse..., pensou depois de alguns minutos Egídio, ao amanhecer, tomando a mala e indo para o trabalho na repartição.

Entre Sombras e FrutosWhere stories live. Discover now