Um Caso de Amor Urgente

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       A mágica do amor tomara Mário novamente. Como custara carregar aqueles finados dele próprio e dos outros, a quem deveria sepultar! Que a pá de cal lhes caísse de uma vez. Mas tentaria como o louco que saía da caverna para ressuscitar e andar pelos caminhos imprevistos, em cujo terreno tudo, mas tudo poderia acontecer. Estava disposto. Erguer-se-ia do chão de sua depressão há tantos anos maculada, destruindo-o avidamente. Recuperava-se do câncer no intestino e, agora, estava era bom, e bom até demais, e mais velho, o rosto já meio marcado pelas rugas, mas os mais velhos também têm direito ao amor.

       Conhecera Rosalinda numa roda de amigos, alguns divorciados, outros solteiros. Mário fora casado duas vezes, tinha duas filhas já adultas. Aquela seria sua terceira 'chance'. E Rosalinda, pouco mais velha do que ele, também havia namorado alguns, porém com ninguém conseguira se comprometer seriamente. Era mulher por demais livre e introspectiva, tímida para tal. Apesar de muito bonita, o rosto moreno e os cabelos lisos, castanho-escuros, curtos até os ombros. Sua depressão havia sido mais severa. Um colega lhe disse que tentara o suicídio por duas vezes, da primeira bebendo veneno e da segunda pondo a cabeça dentro do forno e ligando o gás. Das duas vezes fora salva por um amigo homossexual com quem partilhava a casa, por sorte dela, eu sei lá, pensava Mário, uma louca e tanto. Das duas vezes fora internada em hospitais psiquiátricos. E, devidamente medicada, lá estava ela, tocando suas crises misturadas com a vida que ela considerava a real, "a de seu espírito", lhe dissera num dos jantares com os amigos.

       Apesar disso, ele, que tinha certa vocação até feminina para cuidados, por detrás daquela muralha que Rosalinda punha à frente de si, continuava considerando-a lépida, bela até que agora se tornara. Toda aquela turbulência, afinal, parecia ter ficado para trás, os problemas pelos homens que a abandonaram, traíram, rejeitaram, as recorrentes quedas mais graves do que as dele, a baixa autoestima, o desvalor.

       Na roda daquele final de semana lá estava ela, como sempre, sozinha. Fora um deleite olhar para ela, ele que segredava, ocultava seu sentimento. Rosalinda-Lindíssima tinha um ar bastante mudado, com um sorriso leve; tinha um frescor como nunca antes havia visto nela. Conversava normalmente, muito enfeitada como gostava de estar, e uma aura luminosa, radiante, emanava de si, como que chamando a atenção de todos e de todas.

       Havia, depois de certo ponto dela sob as sombras, uma zona particular onde ninguém jamais conseguiria penetrar. Misteriosa e assertiva, inteligente e enfeitiçadora, com sua prosa agradável, seu raciocínio rápido, seu gosto por literatura. Viera a saber, num dos serões, por um amigo ao seu lado, que lhe cutucou o ombro sussurrando-lhe, que a mulher era poeta. Ah, aquilo foi o toque dos dedos de Midas que lhe faltava para admirá-la, desejá-la cada vez mais, violentamente, escuramente, até que não conseguisse resistir e fosse sentar-se ao lado dela. E como urgia --- pensamentos passavam por sua cabeça como caminhões --- como tinha gana de tê-la mais perto de si, os corpos juntos ao menos, provando o seu suor, sua saliva, seu mel e suas lágrimas, juntos, em êxtase e delícia...

       Mesmo com todas as falhas daquela bela pintura de algum bom artista, a luminosa, mesmo às cinzas misturada, a casca dura que forjara como parte de seu passado e que ela, provavelmente, a tanto custo, retirava (pois ninguém mais do que ele conhecia esses desencontros do amor...) --- mesmo com todos os defeitos e estragos irremediáveis daquela criaturazinha sensível, daquela cabecinha maravilhosa, como, rapidamente, se apaixonava!

       Para não ficar em hipóteses, enfim chegou a vez dele. Tendo uma amiga se ido já tarde daquela noite, ansiosamente foi sentar-se ao lado dela. Pensou, então, mal conseguindo contê-lo em si, naquele nome que espocava como fogos de artifício em sua boca: "Rosa e Linda", foi como a chamou, ao que, gentil, ela respondeu, com um sorriso aberto. Como rosa frágil mas selvagem, ele imaginou, delicada porém tenra, pálida a ponto de jamais precisar da decisão de um homem, dele. E como se realizaria como homem ao lado daquela mulher, pensava também rindo como um menino, de quem ia se lembrando que havia sido --- como se fosse a sua primeira vez!

       Tímido, então, prorrompeu as comportas e tratou de iniciar a prosa, para a qual ela tinha sempre uma resposta pronta, primeiro olhando-o surpresa nos olhos, duas bolas negras iluminadas como duas luas cheias, depois, aos poucos, mais fluentemente, pausada, mas prontamente. Parecia se entediar um pouco com as perguntas que ele lhe fazia a respeito de sua vida. Mas aquilo não seria empecilho para ele. Sabia que aquela mulher seria capaz de tudo e, diferentemente dos outros homens, mais se excitava com a impressão do perigo.

       Ele analisava-a, Rosalinda respondia ao menos às suas perguntas sem demora, de forma franca, e isso também ele achava bom. E as palavras na voz dela eram serenas, muito serenas, porém pouco receptivas. Mas ao menos eram ordenadas, coerentes. "Tinha seu trabalho como escritora em um jornal"; "Tinha muitos amigos"; "Era cortês com quase todos." E também o atraía saber que ela tinha uma porção rebelde, a qual não lhe manifestou abertamente, todavia, pelo que falavam, ele desconfiava ser real, o detetive atrás do rastro da tigresa. Essa porção intempestiva seria capaz de trincar louças, arranhar vidros e faces e discutir de igual para igual quando tentassem rebaixá-la. Mas era doce ainda o som grave de sua voz, um tanto aéreo também.

       Possuía, de outro modo, assuntos interessantes, que começava e mal terminava, no entanto sempre ereta na cadeira de madeira de volutas esculpidas, meio neoclássicas, assuntos de que nunca ouvira falar pela boca de ninguém, ainda mais de uma mulher. Uau! Eram coisas absolutamente novas para ele, sobre atualidades, política, sociologia, psicologia, tudo tendo sido lido em um livro ou outro dos muitos que lera.

       Enfim, o conjunto da mulher, vista assim, exteriormente, sem ousar penetrar-lhe a alma, o que jamais faria com ninguém, além de si mesmo, maravilhavam-no, encantavam-no. A complexidade de sua personalidade, mista de tantas nuances de prata e escuridões, o instigava a querer saber mais, a mergulhar mais na superfície, veementemente. Daria todas as luzes do mundo para trazer à tona aquele sol que abrasaria crispações, por vezes brandas, por vezes violentas das águas. Que ela brilhasse, brilhasse ao menos um pouco, ao menos por um dia. Ele gostaria de ver, estar com ela quando isto acontecesse. No momento só a ponta do iceberg ao sol noturno dos polos e eventuais auroras boreais eletrizantes no céu.

       Sobre a cama gostaria de se aprofundar e consumir todo por aquela chama de sol gelado. Pois, ao raiar do dia, ela lhe olhando por vezes fixamente, outras vezes desviando os olhos completamente, dura, altiva, tendo ficado apenas um casal amigo em uma mesa próxima, veio de longe até ele e chamou-o para irem-se dali. Não havia mais nada que ele pudesse fazer a não ser obedecer, transido, trêmulo na espinha, nos calcanhares, nas raízes dos cabelos. Via que ela era também bem moderna e que levava em conta suas necessidades de caronas como aquelas.

       No leito dele, antes que a deixasse em casa, cercado por matas e grandes árvores, Rosalinda selvática abriu-se pela primeira vez, como uma flor de maracujá. Seus cílios abriam-se e se fechavam como o pistilo das flores meladas de lágrimas, com o mel a lhe escorrer por onde a língua dele, o membro ereto e vigoroso, passeavam os cílios de um inseto faminto. Abraçaram-se por fim, nus e ainda ávidos pela falta do amor que agora lhes cobrava, exigia por se satisfazer. Então eles cediam, novamente, e recomeçavam os beijos, os atritos intensos das peles, dos peitos, das pélvis, das coxas, o coito incansável e prolongado. Mesmo tendo sido este meio atrapalhado, ele jamais saberia dizer por que --- sem dúvida uma grande experiência para ele. Para ela eu já não saberia dizer. Não, certamente não seriam companheiros, não haveria promessas de festins, sedas e serpentinas, não haveria véu branco de noivado, arroz atirado e lua-de-mel em Maceió. Por fim a perna e o braço teso dele sobre a virilha, os seios bem redondos e morenos dela. Ele se sentia um pouco mais curado, talvez, um pouquinho só... E ela, bem, ela desfalecia, aliviada, mole, prazenteira, mesmo que sombria, mesmo que as asinhas do morcego lhe cerrassem o rosto, continuassem ali. Tinha de estar também um pouquinho melhor, tinha que conceder, vai, ao menos um pouquinho, senhora poeta!

       Mas passada a turvação, as águas aos poucos clareando-se nela, que ali no leito ficou entregue por muito tempo, querendo ficar, e ele já insistindo para que ela se fosse, resolviam: ver-se-iam amanhã, às meia-noite. E repetiriam, repetiriam aquilo "ad aeternum", enquanto aquilo durasse.

Entre Sombras e FrutosWhere stories live. Discover now