A Partida

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       Ele era ele? Existia, onde? Lembranças. Havia morrido, mas onde? Lembrava-se do trator. Fora atropelado pelo trator, ele que era um lavrador. Havia sido um lavrador? Havia sido? E agora, estava vivo ou morto? Zé Maria era seu nome. Este era seu nome? Sim, definitivamente estava morto. Ou estava vivo. Chamava-se José Maria, Jo-sé, e não "Zé". Chamava-se? O que era um nome? Definitivamente não ele mesmo. José Maria tivera esposa, Rosiclea, e dois filhos: um homem e uma mulher. Seus filhos eram ainda jovens: Mariovaldo e Jocélia. Eram seus filhos? E Rosiclea, onde estaria?

       Ele havia sido um trabalhador agrícola, chamava-se: ... Tivera dois filhos de nome Mariovaldo e Jocélia e estes eram jovens, ainda. Ainda. Jocélia, Mariovaldo e Rosiclea estavam vivos e ele não. Ele havia sido atropelado por engano por Natalício, companheiro que dirigia o veículo. Havia sido um engano, ele estava deitado sobre a fenda da plantação de soja. Estava muito cansado naquele dia, não sabia porque. Talvez tivesse trabalhado por acaso demais sob o sol ardente do Mato Grosso do Sul. Sabia que havia um outro Mato Grosso, o do Norte, e que o norte era para cima. Para cima de quê, de onde, ele se perguntara certa vez num relampejo. Mas que não se dizia que o outro Mato Grosso era ao norte. Dizia-se apenas Mato Grosso. E que, o do sul, onde morava, era apenas Mato Grosso do Sul. Vivera lá, fora um acidente, Natalício não tivera culpa.

       Estava com muito sono naquele dia e as têmporas ardiam pelo calor excessivo que o ano inteiro tem. Era novembro, quase dezembro. Estava cansado e pensou, somente: vou me deitar na fenda do campo para descansar um pouco. Ali a terra era úmida, irrigada, mais fresca. E pensava agora: Estou vivo ou morto?

       Teve então saudades de Jocélia e dos dois filhos. Eles viviam, deveriam estar tristes por sua morte. A voz lhe respondeu, apenas: "Estás vivo, Zé Maria." As lágrimas então correram por seus olhos --- eram olhos que viam --- de melancolia e partida. Não tivera tempo de se despedir. "Estás vivo, Zé Maria", a voz insistia. Mas não era que estava mesmo? A revolta lhe vinha subindo pelo corpo e se estilhaçou num grito de angústia, cólera e desespero que ninguém ouviu. A voz ouviu. E a família, ouviu? Sim, ouviria meses depois. E anos depois muita diferença não fazia se ele estava vivo, vivo para sempre. E séculos depois, dizem, ele nasceu num campo de trigo, em outro tempo, onde era lavrador, só para variar. Mas lá não se cansava e o sol não era esbraseante. E ele nada pagava para trabalhar recebendo pouco dinheiro e comendo vaca atolada, quando muito, uma vez por mês. Esquecido de Rosiclea que não era mais Rosiclea e de Mariovaldo e Jocélia que não eram mais os tais, o que não vem ao caso esmiuçar aqui.

       Natalício vivera daquela vez, a passada, só, arrependido pela desatenção que tivera em matar o amigo e dilacerar o coração daquela mãe que sozinha ficou com os filhos. Mas depois não era mais Natalício e também vivia nesse eterno ir e vir de transformações, agora num planeta chamado Ey-nol-Waden onde o ano solar tinha 3522 dias. O mesmo tempo da Terra, José Maria pensou, sabia, o tempo e o espaço sendo uma ilusão a se cruzar rápido, tão rápido para os olhos da Terra... Se lá em Ey-nol-Waden os homens viviam 7400 anos em média.

      E o eterno era a vida em tudo nesse cosmo, valha-me Deus! Mas, após séculos, Zé Maria, que chamava-se Hilek-Nowvi, não se espantava mais. Natalício havia ido alguns séculos mais cedo, já que, ao contrário dele, não temera, aprendera Hilek-Nowvi. O medo enfim acabou para eles cinco, as ilusões, o apego, que ainda se encontravam em alegres reuniões vez ou outra pelo espaço, muitas vezes.

Entre Sombras e FrutosWhere stories live. Discover now