Nos Limites da Vida

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       Seria a alma dela masoquista? Pois por que viera para cá, sob que contrato aceito, avalizado, selado? Selma alimentava as dezenas de peixes de seu aquário que se reproduziam vastamente, com total liberalismo. O fato era --- Selma pensava enquanto dispunha as inúmeras bolinhas de ração no aquário --- o fato era que o selo era tão bem posto, sem mancha de cola nenhuma ao redor do papel macio, pardacento, não havia como contestá-lo, não havia como indignar-se.

       Levá-lo, arrastá-lo, às vezes, quando se sentia fraca, até onde em sua trajetória, com prazo de validade e término de ciclo? Não poderia ela, de repente, desistir? E faria o que dali em diante se 'desistisse'? Viveria na sombra apenas, cumprindo suas funções vitais de comer, defecar, respirar, urinar uma vez mais, como que desejando que o tempo não se movesse?

       Seria intolerável, um preço alto demais a se pagar. O preço da própria vida. Mas era, afinal, uma escolha, Selma pensou, uma possibilidade... A qual tomaria, se não de vez, apenas por um tempo, uns dias, procrastinando o óbvio de que ela e tantos outros eus que era, possuíam um propósito, algo a se, magicamente, realizar, para lhe render luzidios pisca-piscas de árvore de Natal. Não era cristã, mas gostava da singela harmonia e beleza da viva árvore, das bolas vermelhas enormes faiscando, louvor à vida do Jesus menino! Promessa de eternidade, tinha de ser!

       E, mais do que não ser cristã, digo a verdade, admirava o Cristo, e louvava-O, pedia-Lhe --- mas o quê? A vida, a vida que lhe corria no sangue acalorado, a graça que a acolhia e aconchegava tão bem nos limites de seu corpo magro e que, forte, levaria adiante, levaria até o tempo que não sabia, para cumprir, obediente, resignada, o seu tempo de crescer, infante que era e ignorada ao fundo de si, como todos nós, e envelhecer, e enfim entregar seu sopro a algo maior, que sequer sabia como e se o tomaria. Seu corpo enfim cá abandonado, desprendido, desapegado. Mas a alma... Ah, a alma iria cumprir a continuidade mais viva, tão imensamente mais forte e consciente e imortal do que ela mesma, e era Selma mesma, espiralando, então, para algum céu, o seu lugarzinho de harmonias suaves e alentos, felizes liberdades que ela, em vida, jamais poderia conceber.

       O desconhecido ao qual sabia que iria, sem entendê-lo jamais com seu pequenino cérebro de carne, a fascinava. A sementinha seca e enrugada de um pêssego que caiu.

       Pois por não suportar a grandeza da própria alma foi que ela morreu, dias depois, de um acidente vascular cerebral.

Entre Sombras e FrutosWhere stories live. Discover now