Reencontro Consigo

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       Tudo para a vida de Berílio pareciam ser miragens de um passado em continuidade de linha dourada, retilínea, em um presente, que, se tentasse apalpá-lo, crestaria-se como castelos antigos e feudais diluídos em névoa. Tentava apalpar, por debaixo da brisa calma, sem centro, e quantas vezes o perdera caindo num vácuo que lhe preenchia o estômago (sim, porque com o estômago também se ama) e se deslindava como uma bolha no ar.

       Eram esses os termos de suas frases nas poucas conversas e frases tratadas com os outros, era este o conteúdo diáfano (uma pérola rebrilhante poderia talvez se desvelar ali... se houvessem prestado mais atenção, mas isto nunca ocorria). O melhor de si ele teria que, como o minerador que escava a caverna, desocultar de si mesmo, com tamanho esforço e transpiração. Difícil era a tarefa de Berílio, meio Sísifo rolando para cima a rocha que torna a rolar, de, antes de se entender com outrem, entender-se com ele mesmo. Era por isso que ele pressentia que, apenas em solidão, conseguiria pensar melhor, ou, antes, achar sua pepita que era pedra ordinária (e tantas já achara) --- que logo descartava na espera contínua, em linha reta longuíssima, de colher coisa ao menos válida.

       Eram nesses momentos de solidão, sem exigir ou conflitar-se consigo e com as pessoas, não julgando-se e julgando-as (árdua tarefa!), quando se deitava para dormir ou lavando a louça, ou quando se recostava em sua poltrona com os pés descalços, de corpo presente e inteiramente entregue, aberto; eram nesses momentos, algumas horas dadas a si, às noites ou aos dias, em que acendia incensos e velas entre fontes artificiais e cristais de ametista, por vezes rezando e pedindo muito pouco para si, que louvava e agradecia, somente, esperando dias melhores.

       E então 'aquilo' acontecia. A inspiração lhe descia intensamente, o iluminava, reabastecia. Um raiozinho terno lhe alterava algo quimicamente, comprovadamente em substância terceira e maior, um encontro com ele mesmo, seu novo eu.

       Uma sutileza então, por mais houvesse seus afazeres diários com o trabalho, a família, uma vaga lembrança do que fora, a lhe contar quem era ele, lhe vinha então inconteste, compondo, engrandecendo o conjunto de uma nova e etérea forma que, ao ser aceita, não lhe permitia retroceder; agarrava-se a ela, gravava-se nele pelo tempo que corria, e que nada, nenhuma maldosa e banal distração do mundo poderia corromper, entortar, apagar de suas lembranças.

       Aos poucos o garimpeiro escavava, retirava com britadeira camadas de rochas moles, suaves, com pás, cinzeis e buris, até formar o cristal perfeito a ser posto, quase que pouco visto depois de pronto, sobre a mais próxima de suas prateleiras domésticas. Do subterrâneo rosado, em meio a seu cérebro limitado de carne, de seus ossos e suas tripas, ele fazia a eleição das novas pepitas indestrutíveis, descendo de nuvens celestes.

       Ao fim era Berílio o que achava, mais e mais, persistentemente, seu mais interior levado pela vida de anos incontáveis afora, Berílio que eram tantos e que era um só, recordado ainda a tempo, ah, sufoco, ah, ansiedade ardorosa, aceso na tocha de suas sensações, aos poucos, memoradas de eternidade...

       Nascia, aos cinquenta e quatro de idade, prenhe daquilo que era ele mesmo. E não eram mais imagens, não eram mais fragmentos o que sentia ter. Era algo visto e uniforme, sólido, incólume, a lhe render satisfação, aleleuia, o júbilo e festa deslumbrantes, de maior do que ele mesmo ele se reencontrar. Como numa espécie de matrimônio consigo, aquilo lhe dava, agradecido pelas prendas amorosas que Berílio 'àquilo' oferecia, em seus solilóquios, cada vez mais, uma sensação de que continuaria, sim, aquilo bastando-lhe, sempre, sempre...

Entre Sombras e FrutosWhere stories live. Discover now