Ainda Viva

4 0 0
                                    


       Josiane em seu leito para dormir. A luz da espessa vela verde acesa à altura de sua cabeça, sobre a cômoda do pequeno quarto bem arranjado --- de uma poltrona carmim de veludo com uma fina manta azul xadrez. E o peitoril da janela dando para inúmeros arranha-céus onde poderiam estar, àquela hora da noite, em alguns apartamentos de luzes acesas, tantas mulheres como ela.

       O pó da penteadeira onde dispunha suas poucas joias acumuladas (ofertadas pelos homens), dentro das gavetas, já havia retirado com a flanela bege. E, limpo o quarto, sem tapetes no piso frio cor de gelo, apenas a luz da vela bruxuleando sobre a seda da grande cama estofada, de altos-relevos abotoados, de colchão macio e sobre o denso guarda-roupa de madeira muito sólida --- a vela rebrilhando aos derramamentos fugazes da luz sua cera em pequenos pingos.

       Pela janela, aberta na noite de verão, ouvia, um tanto embriagada de sono, o correr esparso do tráfego, hora ou outra o ranger dos metais, dos combustíveis nos motores, da borracha arrancando. E o quarto de Josiane perfumado pela vela, sua concentrada luz projetando-se para os lados ao vento fresco vindo de fora, de seu nono andar.

       Numa noite ouviu um assalto tremendo na rua com tiros, um homem baleado que corria de bandidos cruzando a avenida. Depois, alguns gritos de socorro pela rua e o soar das buzinas da ambulância vindo resgatar o rapaz ferido. Ficou muito apavorada e naquele momento rezou pela sobrevivência do pobre homem que resolvera andar por àquela hora em avenida tão perigosa como aquela da cidade.

       Mas aquele susto passou e agora Josiane lembrava-se do dia de hoje com Marcelo. Quando ele, o louro, de olhos verdes, vigoroso, fora embora e lhe deixara um pacote com bombons finíssimos e laços de fita, além de um anel de brilhantes. Retirara a maquiagem e limpara-se do perfume no banheiro conjugado, como uma monja que fosse dormir. Vestia agora, sem cores nos cílios e nas maçãs do rosto, nos lábios, a curta camisola de algodão tratado e delicado nos seios grandes, confortáveis para o deitar-se na cama, pondo uma das mãos para fora desta, suspensa, como era posição confortável para o repouso, como se ela pudesse tocar alguém que lhe desse algum verdadeiro afeto que sempre lhe faltara, como se pudesse ao menos tocar o reflexo da luz material da vela no chão liso que não alcançava. Mas o repouso vinha tarde naquela noite.

       Quando Patrick vinha, o estudante com perfumes de benjoim, eram tangerinas que trazia, as quais juntos comiam, enquanto ela espargia uma gota do perfume por sobre o lençol e o odor se espalhava por todo o quarto do qual agora ela não saía. Quando era Álvaro, o juiz de direito casado, uns vestidos flutuantes, negros, cinzas, que deixava que o vento da noite tremulasse em volta de seu corpo sinuoso; era o que usava, então, aderindo a mais um personagem ao gosto do freguês. O vestido ajustava-se bem em suas ancas grandes, em sua cintura fina, o decote grande terminando nas primeiras dobras brancas dos seios. E Josiane deixava que o vento, cada vez mais forte naquelas noites de verão, lhe corresse pelos cabelos cacheados e castanhos que ela vivia alisando, pois gostava, como a atriz de cinema que vira num filme, de ondulações mais leves que acabavam nas pontas como foices louras.

       E havia Rinaldo e Bruno e Joubert, e outros que, mais esporadicamente, vinham ou não voltavam nunca mais, deixando colares de âmbar, brincos de argolas, pentes de dentes grandes e, na maior parte das vezes, cédulas e moedas que ela ia juntando na caixinha de metal até ter a emoção de, ela mesma, abri-la para conferir o valor sobrado. Os restos dela.

      Caixa de metal como urna funerária, isso sim!, ela pensava revoltada, indignada, cujo conteúdo, ela, sozinha, via, poderia reduzir à cinzas como seu próprio corpo. O corpo inerte sem ansiolíticos (alguns incensos de benjoim acesos), quase nu, naquela noite, naquele quarto que ela sabia não ser seu, e do qual sairia sozinha um dia (ela já sentia às vezes), num caixão, sem nada de "seu" levar, além de suas boas e más ações, pensamentos e palavras (ela esforçava-se para tê-los bons, de acordo com o livro de autoajuda que lera). Sozinha sozinha no momento de sua morte, ela sentia, como fora em seu nascimento, ao qual retornaria.

       Então, a chama da vela, como se fosse fazer uma viagem sem bagagens, apagava-se num sopro mais forte do vento, e ela permanecia no escuro, permanecia uns minutos mais, até dormir mais uma noite, apesar de o sono não vir. Mas não, não queimaria as cédulas, provocando talvez um incêndio em meio a gritos de morte por todo o prédio. Sozinha, sozinha, ela pensou, e ainda viva como todos eles, e como todos nós. Para amanhã aquela caixa de "pílulas" e a tabela que errara da menstruação, mais uma vez a enjoando, deixada a tempo pela colega Maria sobre o criado-mudo com o copo de água estagnada.

Entre Sombras e FrutosWhere stories live. Discover now