Entre Sombras e Frutos ou As Terras Desbravadoras

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       Ele pensava, "eu não gosto de você", sem, entretanto, nunca revelar a ela. Era uma mulher jovem, bem-proporcionada nas formas curvas, fartas e muito brancas. Belas. E por detrás de sua aparente máscara, que ele levemente retirava, ela, do mesmo modo que ele, ao fundo, e mais ao fundo, era apenas umas luzes e sombras, entremeadas, confundidas, por vezes apenas alguns reflexos rebrilhando na descoberta, para depois fugirem para o espaço sem fim, linha puxada por Ariadne que nunca terminava seu ofício de fiar e desatar. Umas pintas também eriçavam a pele dela, que ele queria tocar, uma corrente elétrica mais à superfície passando vagamente por ele, querendo fincar sua cúspide ereta, movimentá-la ágil e, despudorado, o mastro erguido e procurando concavidades, derramar seu líquido abundante.

       Mas dominá-la, propriedade dele que não era, jamais ninguém seria, nem ele mesmo propriedade dela ou de algum deus do Olimpo ou dos orientes; prendê-la, ele jamais poderia. Ela era uma mulher por demais livre, ele sabia, conformado, curioso por mais conhecê-la então, entendê-la, aprender-lhe a lição de liberdade, de vida e morte.

       E quando estavam juntos, o que em alguns dias ocorria, como adorava passear sobre ela sua língua sugando as rodas marrom-escuras dos seios, onde também notava, como um fotógrafo que observasse, as muitas pintas, tão pequeninas, que quase se perdiam na visão microscópica. Ele que criança não era e não aguardava o leite, e sim o mel que se desprendia dos lábios mais inferiores. Roçava-lhe então brandamente a barba de homem forte, tesudo que era, até que sorvesse o néctar perfumado que o enfeitiçava. Por vezes também gostava de feri-la um pouco com a barba hirta pelo pescoço, pelo ventre, pelos lábios que puxava até que se coagulassem de sangue fresco.

       Mas ali, naquele terreno que ele não conseguia, não poderia jamais fertilizar, mas que crescia, mesmo à revelia dele, por milagre curioso --- brotos de árvores, depois galhos mais vívidos e verdes, depois ramas mais largas ao ponto de se entrelaçarem e confundirem-se umas com as outras, até que formassem, não uma terra arada, cuidada meticulosamente por engenheiro, devidamente adubada por qualquer artificial produto químico --- mas um cipoal selvagem que houvesse ali nascido sem que houvessem-no semeado, sobre a terra pródiga e esperdiçada --- naquele terreno jamais poderia fincar sua bandeira, tomar posse de senhor de terras, capitão do mato, senhor de escravos e escravas.

       Nela, sem meios-termos, gostaria apenas de passear-lhe pelos meandros, por suas secreções, os galhos se espaçando daquela selva e eclodindo também outras mudas que mais e mais se avolumavam, tomando mais espaços de terra livre e descampada, até que o terreno todo que se permitiram em acordo se completasse. Seria ela a base passiva e acolhedora onde poderia penetrar mais ao fundo, retirando-lhe o véu até às câmaras mais úmidas e escuras, onde suas pupilas já não podiam distinguir mais nada além de gozo e deleite. Seria este escuro o arrimo onde seu mais negro caos, como um deus precisando de um homem para existir, pudesse enfim se manifestar. Como se ela precisasse dele para existir e ele, o homem, se tomarmos um dos referenciais, o dele, precisasse dela, pelo menos por alguns momentos, raros, que iam se esmaecendo às brumas das manhãs de outono... Como se precisasse, pelas desrazões do amor, enfim, dela, para medrar sua ara, sua floresta, nunca uma plantação, nunca uma colônia ou capitania, pois como lhes disse, eles eram independentes, incomunicáveis em profundeza e superfície --- eram enfim livres e sozinhos.

       E as aranhas e as ramas e as folhas gordas, espessas, e as raízes aparentes, coleando por sobre a terra, e mais procurando espaços debaixo dela para se reproduzirem, por vezes deixados alguns insetos, algumas larvas, algumas borboletas se alimentando de seus méis, suas seivas marrons, por si só cresciam e nunca eram rendidas a algum fruto ou filho que pudessem colher para si.

       Porque os filhos viriam, muitos, e não seriam dele ou dela: eram da própria selva viva, eram do mundo inteiro daquelas terras desbravadoras, as quais, já nada deles, após passarem os anos, lhes pediriam em troca, além de que se tornassem velhos, estéreis e bons e cuidadosos pais. Mais ainda gozando, sem pejo pela idade, gozando então o puro amor que já não precisava de filhos, mas que, melhor ainda, deixavam-nos deitarem-se no espaço da mata e se banhar daquela doce sombra no interior dela.

       Sem vertigem, ali, calmamente, ele se deitaria, após a morte dela, por infecção devido a esses seres vivos e invisíveis que se alimentam, calmamente, das plantas e da carne, a esses serezinhos de nome "bactérias" que as roem vagarosos. Ele aguardaria também, quem sabe, o seu momento de, na terra úmida, adentrar aos poucos, até que tudo fosse secura e fogo a arder, a arder, ainda, até o último instante. Que, passado, traria a eternidade, quem sabe, na qual, em algum lugar ou circunstância, a reencontraria --- como a seus amados filhos, seus caros frutos.

Entre Sombras e FrutosWhere stories live. Discover now