A Mulher de Fé

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       O mundo, ah o mundo em sua carnificina, em seu ofício de roubar, explorar, matar, sugar o sangue dos homens para erigir os seus troféus fúteis, absurdos. Pensava ela no mundo e não achava pontos de congruência, conjunto isolado, egoísta, nunca se comunicando, contendo, dividindo humildemente o pão aos outros, para além das cercas das prisões enfeitadas das casas de famílias, mas se desagregando, espalhando seu odor de ruínas, poeira e cadáveres.

       Tão bem lacrado o sangue era vendido e prostituído nas bancas dos supermercados, devidamente, limpamente etiquetado. Ela não sabia, aturdida, se ia ou vinha para o lado de tantas ofertas falsas, ao fundo o valor do requinte e o da miséria, disparatados, sendo o de uma miséria maior, de todos nós --- a miséria das almas aguilhoadas, encarceradas na mesma vala suja e lodosa de um campo de batalhas sutil, agora.

       Insidioso era este campo pleno de inimigos invisíveis, que ela não poderia recolher no ar, apontar os elétrons negativos "se soubesse o local deles não poderia calcular a velocidade com que giravam, etc." Não, não poderia dar nome e identidade própria, física, de rostos, flancos e corpos, sujeito ativo. Antes, se infiltrava o inimigo em tudo, nos furos das calhas, nas paredes dos edifícios, escritórios, fábricas, casas --- nas avenidas apinhadas de automóveis --- o ar denso e fétido como após a explosão de uma bomba. Mas via o rosto do algoz, se se concentrasse bastante, seus olhos entrecerrados, seu riso contorcido e escarninho querendo papar mais e mais. Seu rosto pálido e aos poucos se decompondo, esverdeado.

       Ou bem poderia ser ele uma alma de quem já morreu, agora só faltando mesmo expurgar, sepultar o corpo, o que de bom dele se aproveitasse para consumo. O fantasma que havia sido, há muitos séculos, de medo e opressão, há tantos séculos incontáveis. Continuava a vagar, se ela, Catarina, aprofundasse os olhos, como uma fraca ideia, um valor de nada, uma bela coisa ordinária de névoa, em algumas mentes, alguns delírios de pessoas. Era realmente terrível sua face, seu corpo disforme e gordo.

       Quando sairia de vez dela e iria-se deitar na campa, às sombras do fim, e não continuar perturbando-a e ao mundo, o próprio mundo que poderia ser, ainda, podia, ela acreditava, débil, por um segundo... O mundo real, verdadeiro, desonesto, de repente inventado por alguma fada de pó branco nas bochechas e asas luzidias. O mundo das portas se abrindo, dos inocentes que, nem violentos nem violentados, de nenhum dos dois lados dicotômicos, não fossem pisados, dominados, cuspidos, expelidos do grande banquete de Fausto? Não, não havia tal mundo, ela delirava.

       Quanto aos violentos e violentados (aí ela se incluía), alternavam-se na Roda de Sansara; era questão apenas de um estar por cima e o outro por debaixo, eternamente separados, incompatíveis, em desacordo, em desalinho caótico. Um querendo subir e o outro também. No topo e abaixo dela, da Roda, no rés do chão, se dividiam em grupos de "vencedores" e "perdedores", "bons" e "maus", mas tudo uma questão tacanha de egos isolados e sofredores, frustrados, profundamente doentes; querendo inflar mais brasa em um trem gigantesco de ilusões desgovernado e já comido por ferrugem. Quem construiu o trem, desde que remotos tempos?, ela se perguntava confusa, sem conseguir entender, perdendo a memória como uma brisa da qual também se desfazia. Alzheimer geral?

       No entanto, para além da ferrugem brava, colossal, seu último sonho, que morreu naquela manhã, via que nunca possuíra vida própria, fora elaborada por ela, a ferrugem, ah, descobria culpada. O trem, ela tinha que se voltar a ele, rápido, urgente, se ainda tivesse tempo --- via --- o trem descarrilava, bambo, neurologicamente lesado, a ponto de cambalear, já sem ataques sutis, o idoso a ponto de desfalecer, pequenino como um bebê fraco, um pombo morto a seus pés. Ela, sem sinal algum de vitória ou glória, ganhava-o, então. Sem sinal de uma única lágrima, que há tantos anos era preparada --- sem que ela pudesse saber ou quisesse --- e não conseguiria verter.

       Era inofensivo este morto, o inexistente mundo, a inexistente vida. Já não poderia sacar o punhal cósmico e desferir no ventre de ninguém, "ninguém", ela dizia, assim, de modo "absolutamente impessoal e quase neutro..." Quando conquistaria de vez aquilo que não era isenção ou indiferença, mas, muito pelo contrário, uma necessária e laboriosa "n-e-u-t-r-a-l-i-d-a-d-e?..."

       Pois que morresse de vez, Catarina dizia, sem lamentá-lo, sem sequer carpi-lo, profundamente neutra. O corpo dele não importava, deixava-o ir como se ela mesma fosse morrendo, purificando-se dia a dia. Já não o julgava, o mundo-Raimundo. Não seria ela a salvá-lo ou sepultá-lo. Dever de alguma coisa seria?, certamente que sim, mesmo que disso ela não viesse saber, aprofundar-se. Não seria ela a tocar, teatral, a marcha fúnebre dos militares ao trompete. Suportaria a grotesca cerimônia daquele fim, longe dela, tão longe, como se fosse em um outro mundo e não mais o visse.

       No entanto a alma deste mundo iria, quereria ascender após o terceiro ou quinto dia, não importava, em algum futuro muito longínquo, puríssima, acrisolada. Apenas o que fosse casto e legítimo, verdadeiro e honesto, permaneceria, dos entulhos, da lama, do lixo a ser abrasado a seco, pó, cinzas, menos que cinzas, ela nunca mais ousando conhecer!, dizia-se tola, envergonhada, com remorso.

       E o deus com sua coroa (talvez um pedaço daquela cinza por tortuosos meios pendesse da coroa ainda, reaproveitada), o deus, sem lacrimejar, sem lamúria ou sinal algum de arrependimento por sua criação, inumano, fitaria o novo mundo, frio, passados alguns meses ou o tempo que fosse inumerável. Do alto de sua sapiência, desapegado de tudo o que aqui em baixo se armava e resolvia, com o último de seus raios daquela era terrestre, daquele ciclo, poria os detritos do que foi no arquivo da "História da Humanidade Até o Momento Presente", ou, sob o título de: "Os Meus Filhos Amados e Rebeldes, em Cujos Últimos Dias Lhes Foi Concedida Sua Liberdade e a Eles Assim Foi Dada, Conforme a Possibilidade Avaliada do Fracasso, etc..."

       Aquilo de repente nauseou Catarina até o ponto em que foi à privada do lavabo e ali desaguou tudo o que era apenas água e saliva daquele dia em que mal havia se alimentado...

       Depois de duas semanas, continuou, fatigada, porém. Não se preocupava ela se seria salva ou não. Não temia nada. Não se ocupava em saber o que dela ficaria e o que seria largado dela para fora daquela tumba. Na verdade não se preocupava com mais nada, porém NADA dito de forma tão geral, mas tão geral, que era como se nem fosse uma palavra, um conceito possível para sua cabecinha humana, enfim, recheada também de besteiras, fraquezas e covardias. Mas possuía ela a si, ainda, ó, sempre possuiu, mesmo que dali a trezentos anos não possuísse. E, respeitosa por si, pelos homens também, por tudo, por tudo de uma forma mais abrangente do que nos dias anteriores, progredindo, dava graças por simplesmente estar viva... Ainda vivia, pensava respirando profundamente, lentamente, Catarina, as pupilas no quarto escuro sem pressa para dormirem, sem pressa para mais nada.

       Primitiva, nobre ou santa, não importava, que tocasse a vida como se tocam ovelhas, bois, queridos e apascentados bois ruminando seu capim, sabendo que não seria desamparada. Por alguma coisa, ela suspeitava, investigava dali em diante, e que lhe viria numa calma, num afago, numa prece silenciosa, enquanto ela, Catarina, Catarina, esperava, muito saudosa.

Entre Sombras e FrutosWhere stories live. Discover now