O Mito Diante da Torrente Viva

10 0 0
                                    


       Dionísio pensava, não me batam, pois que me reduzo a estilhaços que levam tempo para se juntar, se é que num dia se juntarão. E como apanhara até ali! Mas, à parte disso, pensava, autoconhecer-se era bom, importante. Reservava horas de seu dia para tanto, após o trabalho no escritório de ferragens, para tal feito.

       É que tinha seu orgulho, independente do sexo e dos relacionamentos mais superficiais com a esposa, com os filhos, a sogra. E como era egoísta, refletia, como podia deprimi-lo ainda mais saber quem de fato era, mostrado ao mundo. Nunca seria psicanalisado, tinha aversão de que o enquadrassem nos padrões que já eram velhos e estabelecidos. Na verdade queria saber e inventar aquilo que até hoje não havia sido instaurado, mal querendo ele instaurar doutrinas, teorias. Acreditava que algo que explicasse a vida ainda não havia sido criado. E Dionísio era assunto em formação, não sabia dizer ao certo o que se tornaria, se é que se tornaria, o que iria render o pé de fruta dele mesmo que plantara há tanto tempo e que demorava a crescer, dar frutos. Mas, paciência... Um dia, se muitos lhe fossem dados, o que ele pressentia, não ficaria só para brotinhos e se criaria ramas, as flores e os frutos que, ao fim, eram ele mesmo.

       Era um ser em transação, ainda acre, ainda seco --- seu doce sumo apenas suspeitado, dando-o por vezes, num futuro, a seres de outro planeta de matéria mais sutil, como se a nave, ao descer, se descesse, e os seres que dela fossem tripulantes, lhe dissessem por pensamento: "Este ainda renderá alguma coisa que não sabemos. Melhor é tornar a vir quando estiver ao menos um pouco mais completo."

       Não ansiava, pois tinha uma das poucas vantagens de ser paciente --- o que o salvava --- mas algo nele, algo dos tempos, quando andava pelas ruas observando os mendigos e os transeuntes pobres e mal tratados --- algo nele urgia por nascer, se desenvolver, evoluir. Com paciência tolerava os outros --- a maioria tortos pés de alguma planta, suas carências de raízes duras buscando mais matar a fome enorme, a falta, de caules mal estruturados e secos, até as ramas inteiras infectadas por pragas. Algumas eram condenadas a se podar, muitas outras a serem cortadas inteiras para produzirem ramos saudáveis e adaptáveis a mundos menos exigentes, tarefas mais fáceis de repouso.

       Era ígneo este julgamento, abrasava-se em seu olhar compassivo. Porquanto as almas humanas, por detrás da sutil vibração esburacada que emanavam, precisariam só mesmo de um milagre para não se destruírem de uma vez: o tiro fatídico abreviando o trabalho que poderia ser inútil, já que pouca consciência havia e pouca vontade de mudar. As informações, nesses dias, nada secretas, eram dadas a todos, em linguagem acessível a qualquer um, mas lhes passavam longe, ao alto. E os homens, acorrentados em seus cabrestos, culpando a má sorte dos sistemas políticos e econômicos, manipulados sabe-se lá por quem, ou vitimizando-se, entregando-se à mornidão --- a espalhada depressão a que voltamos por todos os cantos, contagiando todas as classes, crenças e povos --- os homens pareciam não se dar a oportunidade de, ao menos, com certo esforço, simplesmente olharem para o alto num dia de sol radiante ou de luas cheias e céus estrelados.

       Ali, em cima de suas cabeças, ou bem na frente do nariz, se preferissem, estavam muitos mananciais férteis de soluções, em livros, conversas, palestras. Mas quem não busca, nada tem. Nada brotava da terra ou caía do céu. O trabalho era uma lei, eram precisos os homens para realizá-lo ou para que através deles fosse feito, ora, e os vagabundos só sabiam mesmo era se danarem e tentarem (por vezes conseguiam) danar os outros nas pequenas violências, pequenas palavras que feriam, ofendiam, no dia-a-dia, até os crimes mais graves...

       É que, de assuntos, palestras, vocábulos para tanta gente semianalfabeta, dominada também por um sistema insidioso e perverso, que planejava mantê-la mais ignorante para melhor dominá-la, e tirar-lhe o suor de seu trabalho e a tal moeda; para esses opressores de si mesmos e oprimidos, não teriam como tomar conhecimento, banidos que eram do "luxo" de conhecer, e do quanto um livro, por exemplo, como não deveria ser, assim como os colégios, eram assuntos que seguiam os ditames apenas do mercado. Mercado que favorecia os miseráveis de alma, os poderosos.

       O conhecimento real, verdadeiro, ao fim, vogando, passado por tantos autores, passava despercebido, e os 9% tomava a louca, ousada atitude, de estender a mão e colher a maçã farta e doce, substanciosa, que lhes preencheria o estômago, a alma, satisfazendo-a por muito tempo e se gravando indelével nela, peremptoriamente. O conhecimento que nenhum gatuno ou 'presidente da república', 'democrata', 'conservador' ou 'liberal', rei vaidoso e fétido poderiam-lhes usurpar, sentados que eram estes em suas latrinas, onde alimentados só da carne morta, produziam mesmo só bosta: --- dada a todos para comerem, ainda, alguns nem suspeitando-lhe o aroma, outros cuspindo, outros vomitando queixas e doenças (outros, mais loucos, dizendo adorá-la, gozá-la), mas que não tinham a coragem de afastar de vez a imposta ceia do armado, falso banquete.

       Somente os que conheceram o fruto daquela árvore, tão esquecido, mas sempre disciplinado, aguardando, cumprindo sua função imparcial de, paciencioso, meio nas trevas mesmo, germinar, passavam longe do prato asqueroso e iam se alimentar da ambrosia...

       É que, por dote da natureza, mesmo aos contratempos e obstáculos de todos nós, tinham estes a força, a bravura, a insistência de mais procurar o frutinho, exigindo muito da visão e das mãos. E a grande parte estava doente de ambos os órgãos e agonizava, dali a pouco morreria.

       E como este frutinho, quando era aceita sua incondicional oferta, ficava feliz ao ser reconhecido! Então chegava a reluzir e a crescer muito mais, como uma lanterna enorme de estarrecer por sua beleza. E nada pedia em troca, fazia isso por nós, por nós, miseráveis, perdidos, e não por este ou aquele partido, aquele "escolhido", ou por sua própria glória... Ele que nem humano era, lá aguardaria adulações, elogios falsos, reconhecimentos falsos?! Ele que estava a mil anos-luz de nós, até desdobrar-se um pouco, precisando de nós para cumprir seu plano, sua meta também (porque ele os tinha!), precisando de nós para ser pego e reluzir novamente, neste piscar cintilante; e se tornar fruto menor, de menos luz, por piedade, para não ferir nossos olhos delicados e pálidos, e os de Dionísio, o cada vez mais sem vida própria, o de olheiras, por hora, pois estava ferido, o que nessa história não vem ao caso. "O Cada Vez Mais Neutro", para continuar existindo, em auxílio aos homens, às plantas e aos bichos com compaixão, sem nada esperar em devolução, pois que era já Uno com o Todo. 

Entre Sombras e FrutosWhere stories live. Discover now