De Volta ao Cinza ou Problema de Escolha

7 0 0
                                    


       Rosalia era seu nome. Acordava tarde em seu pequeno mas confortável apartamento e ia aguar naquele sábado seus vasos de flores várias: gerânios, violetas, hortênsias e até a majestosa orquídea, última aquisição dada pela colega Dóris.

       Mas, e depois? As flores serviam para alegrar seus dias, mas, tendo cuidado delas e feito o serviço doméstico, que tanto tempo lhe ocupara, nada tinha a fazer.

       Caía de repente, sentada no sofá, como se tivesse sido atirada ali violentamente por alguém, num vazio profundo, doído, que poderia lhe trincar um osso. O que poderia preenchê-lo?, ela se perguntava automaticamente, rápido, era preciso fazê-lo logo. Até cansava-se já de se fazer essa mesma pergunta.

       Então encheu a banheira com água muito quente e sais borbulhantes, e ali entrou, ficou confortável, por uma hora, sem querer pensar em absolutamente NADA. Depois saiu da banheira, meio desidratada, enjoada que estava, enrugadíssima, e secou-se por cima com o roupão de cambraia.

       Era hora do almoço, começava a sentir fome, o estômago dando roncos marulhados. Então ligou para o restaurante do bairro e pediu o prato feito. Naquele dia, como em vários, definitivamente, não tinha vontade de cozinhar.

       A comida chegou logo. Comeu, jogou alguns detritos no lixo. Depois foi escovar os dentes.

       E, olhando-se no espelho novamente, qual não foi o espanto quando viu que envelhecia um pouco mais. Sentiu-se feia, maltratada, malcuidada, e, àquela hora ainda com seu robe!? Umas rugas de meia idade já se instalavam e deformavam um pouco os cantos da face, dos olhos. Os cabelos muito longos e meio crespos estavam emaranhados. Como não havia se penteado quando saiu do banho?, pensava melancólica, como mal andava querendo saber de si. "Ó", pensou desperta, "como o entregador do restaurante, rapaz bonito até, louro, alto, de cabelos também crespos e olhos de um atraente castanho, a teria visto?", ela quase chorou sem fôlego para se pentear.

       Mas penteou-se rapidamente, os cabelos já secos, até que, por esforço, se alisassem totalmente e mal lhe caíssem sobre os ombros. Imediatamente também passou o pó-de-arroz escuro e o blush marrom. Pronto: assim as rugas se escondiam um pouco. Depois passou a sombra verde, o rímel e o batom rosa. E ficou parada, mirando-se tão longamente no espelho, tão vaga, como se nele ninguém visse refletido, como se adentrasse no oco dele, ao vazio dele misturado.

       Foi quando voltou a si, avoada, primeiro franzindo levemente a testa, depois abrindo mais os olhos e a boca pintados, mas, depois, esta se fechando, contraída num desalento que lhe apertava a garganta. "É que, por debaixo da maquiagem" --- ela continuava seu solilóquio --- "eu estou envelhecendo, envelhecendo..." "E, se mostrar meu rosto real, será isto o que verão, além de não adiantar disfarçar todo o tempo, afinal..." Tomou ar. "Eu sou tão só, tão só. Mal busco minhas amigas, me comprometo, relaciono com alguém". Uma insatisfação a magoava.

       Pois havia Marco, que a admirava, ele havia dito certa vez num coquetel, e telefonara-lhe ainda ontem, e ela havia recusado o convite para o jantar fino no restaurante da orla de Ipanema, dizendo-lhe que tinha muitos trabalhos de tradução para fazer. Como fora tola! Por que se negligenciara a tal ponto, não atendera a seu desejo, à sua possibilidade de divertir-se, conversar, sair de casa, pondo-se ela mesma mais uma vez em segundo plano, e poderia ser até que...

       Esperou, então, ansiosa pelo final da tarde e quando deram seis horas em ponto telefonou para Marco. Sim, estava tudo bem com ela... Aquele assunto de ontem, havia pensado bem, melhor, em si, dar-se-ia uma chance... Que a encontrasse dali a pouco no mesmo lugar. Sim, os vinhos de lá eram ótimos, ela sabia.

       Marco parecia não entender tantas explicações da mulher. Mas como a admirava, deslumbrado, desejando-a tanto e urgentemente, decidiu que tentaria. Como demorara a ceder, não havia sido a primeira recusa, ele já pensava quase em desistir. E agora ela vinha lhe telefonar! Estava excitadíssimo! Mas perguntaria a ela o motivo de tal frieza, tal distanciamento. Mas, Rosalia, mesmo que tão misteriosa e paradoxal, bonita que era, valia a pena. Na verdade, Marco, que sempre fora um homem muito objetivo, ocupado com seus negócios, considerava-a até um pouco estranha. Mas era uma mulher bela, ponderava.

       "Como minha autoestima tem melhorado ultimamente!", ela lhe disse feliz, após a quarta taça de champagne, por permitir-se, num risco, na primeira chance, depois de tantas vezes em que dera errado, 'amar e ser amada', 'desejar e ser desejada'. Da última vez Norberto a trocara por outra, dez anos mais nova, ela lhe confessou trêmula, quase minguando, manchando a taça com seu batom rosa. Rosalia dizia aquilo e ele, entre um bocejo e outro, parecia entendê-la perfeitamente e ver mais nítido o seu rosto: um dente inferior com a ponta quebrada e uma pintura que, subitamente, notava agora, se revelava por detrás de uma camada velha de cinzas. E não era que as cores até lhe agradavam?, comemorou ele, aceito pelo que buscava e lhe chegava, ele que, admitia, há muito tempo também não 'amava' ou 'deixava-se ser amado'.

       Conhecia-a melhor, vagamente, ao final do jantar que durou muitas horas. Que alívio não ter caído num engodo! Pois era que, ao vê-la em alguns finais de semana nas casas dos amigos em comum, chegara a jurar que as cores, as tintas, não eram aquelas, eram de fato cinzas. Ou mais vistosas, ricas, harmoniosas também, justamente como agora as via. Rosalia era o que era, enfim, uma mulher de verdade, humana, com todas as suas fraquezas, as suas limitações, os seus defeitozinhos dos quais até começava a gostar... Assim como ele, afinal das contas, novamente analisou.

       No próximo encontro, dali a dois dias, pois ele estaria muito ocupado com o trabalho, iriam para aquele "lugar especial" que ele lhe havia prometido. O que acontecerá lá torço para que seja bom também. E Camilo, o empresário, colega de Leila, o qual ela disse que iria lhe apresentar?, pensava Rosalia vitoriosa, com fúria. E ele, até que começava a deixar Gisele, que com ele trabalhava no escritório e com quem tinha um caso banal, num segundo plano, sobre a estante um pouco mais ao alto e de mais difícil acesso em sua oficina afetiva, a fim de tentar investir em Lia, apenas em Lia.

Entre Sombras e FrutosWhere stories live. Discover now