A Conversa

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       1ª versão

       E depois, o que aconteceria? O que se sucede? Eu, Joaquim Batista pergunto na primeira pessoa: eu, Joaquim Batista, pergunto: o que acontecerá depois? Mas se preferirem podem me chamar pela terceira pessoa. Assim: o que sucederá depois a Joaquim Batista?

       Sou um homem comum. Trabalho como escriturário, tenho uma mulher e filhas. Três garotonas. Sou o único homem da casa. Sou um homem comum e tenho minha dignidade. Sou um digno cidadão respeitado, funcionário exemplar do governo. Faço bem meus trabalhos na repartição, entre papeis, memorandos, organogramas e recebimentos carimbados e arquivados. Faço bem meu trabalho no Tabelionato da Secretaria da Saúde de meu município. Às vezes imagino minha morte. Como seria. Se caísse no banheiro e batesse a testa na privada no golpe fatal. Não tenho medo. O sangue escorreria num fio pelo azulejo. Isso se minha mulher, Ligiane Batista, ou uma de minhas filhas, ou a única que mora conosco, Isabela, não estivessem em casa.

       Seria de noite. Minha respeitosíssima esposa Ligiane estaria dando aulas no Mobral e Isabela estaria na rua fazendo qualquer coisa, uns passeios na casa das amigas onde joga video-game ou nas festas de cosplay. Ou bebendo com sua turminha e aquele rapaz, seu namorado, ela me disse (detesto aquele cara) em algum bar do shopping da cidade, ou no cinema. Mas fugiu-me, apesar de detestá-lo, agora, o nome daquele moleque. Depois me lembrarei...

       Ligiane é professora, competentíssima, atenciosa. Os alunos do Mobral têm muita afeição por ela. Eu não tenho ciúme dos alunos dela, especialmente de Fernando, o mais interessado em aprender dentre todos, o preferido, Ligiane me disse. Minha esposa é de fato um exemplo de mãe e mulher e é de fato muito simpática. Eu não tenho ciúme. Esse tal Fernando é rapaz esforçado, honesto, trabalha duro durante o dia e de noite ainda arruma disposição para estudar e bem. Um bom rapaz, penso eu.

       A água da chaleira ferveu e eu preciso passar o café, limpamente. Por que disse isso, no meio de tudo o que estou dizendo? Não sei. Apenas disse. Passei o café no coador de pano. Gosto do café forte, especialmente de noite, e tem que ser coado no coador de pano porque conserva mais o gosto puro dos grãos. Não tira-me o sono, pelo contrário, me faz dormir. Gosto de dormir, devo dizer e digo. Se há uma coisa que gosto de fazer, além de outras que não cito aqui por decoro, é de dormir, sempre que posso, aproveitando a oportunidade, o máximo que consigo. Mas são raros esses momentos. É claro, aos finais de semana há mais chance.

       Mas geralmente Ligiane, que também está solta, me acorda cedo aos domingos para irmos ao parque correr. Quero dizer, para ela correr, pois eu não gosto. Só de caminhar, num ritmo fluente, nem tão rápido, nem tão lento. Exercícios físicos fazem bem à saúde, disso sei, e Ligiane sempre me fala. A ciência comprovou e vive descobrindo mais coisas sobre como cuidar do bem-estar e da saúde e solta no Google, é óbvio. Gosto de pesquisar sobre este tema de saúde, meu tema preferido de estudo atualmente, aliás o único que tenho agora. Então, aos domingos, troco os chinelos que detesto, detesto, hem, e ponho meu par de tênis amortecedores, de boa marca que chama a atenção dos passantes com suas fluorescências. Possuo os tênis que são a referência que há em tecnologia e ergonomia para corredores. Isto eu li no Google.

       Sim, sou um homem atualizado. Ligiane também é, além das atenciosas noites comigo em que combinamos há vinte anos passarmos juntos. Senão certamente não estaríamos juntos até hoje. Mas eu sou um homem pudico e não quero entrar em detalhes do que nós, de vez em quando, fazemos de noite no quarto, uau, que maravilhas de momentos, que êxtases, epifanias passamos juntos nessas horas combinadas, digo a ela que conhece mais o português do que eu.

       Mas fui eu a descobrir o significado desta palavra, "epifania", assistindo, por acaso, a um noticiário literário na TV. Não me importo muito com esse negócio de livros, sabe? Li só alguns que são (como se diz?) --- ah, sim, de coaching pessoal. Sou um homem prático. Neste livro terra-a-terra, de coisas do mundo real, como digo a Li, o autor, um judeu alemão, ensina passo a passo como ascender na vida profissional, seja qual for a sua carreira. É que tenho eu ainda um sonho, sabem? O de largar a vida de funcionário público e montar meu próprio negócio para vender softwares para computadores, tablets e telefones celulares.

Entre Sombras e FrutosWhere stories live. Discover now