O Romancista Desiludido

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       Ivan seria sempre aéreo, como se catasse conchinhas ou arcos de seu próprio sonho. Tantos projetos, divagações, ideias que não renderam nenhuma coisa concreta, formal, realizada, muitas vezes dispersas e largadas antes que sequer as propusesse questionador. Enfim, este romancista, após tantos anos escrevendo as linhas de seus romances e apagando-as logo em seguida, por não gostar delas e por não considerar que havia dito aquilo que queria dizer, não chegou a acabar e publicar um único livro.

       Porém, insistindo, teimoso que seria até dali a dois anos, quando definitivamente, mais nada escreveria – sequer pensaria mais nisto! --- considerava que tudo aquilo era uma quimera, sabia, ora, por ter ideia também do que é palpável e possível.

       Então continuava a remoer ânsias, desejos em si mesmos, lhe bulindo, lhe revirando por dentro pra cima e para baixo sem nunca chegar ao fim. Teria medo de que as coisas, como elas são de fato, se acabassem? Pois elas se acabavam, ele tinha ciência do óbvio. Para que outras visões e audições viesse a construir dentro de si e que logo logo se dissipariam.

       Ivan esforçava-se pelo resultado, pela coisa física, acabada, inteiramente mostrada ao público, para depois do ponto final se atirar a outras inspirações segredadas. Pois a ninguém jamais revelaria suas intenções, seus anseios, sequer à sua família.

       Em sua solidão, abrasado, cremado como os papeis que, de fato, por vezes cremava numa bacia de ferro, como cremadas as suas próprias tentativas repetidamente, já enfraquecendo-se de criar algo nas artes literárias, quando essas sementinhas por si só ainda não morriam, continuava tentando levar aos outros e ao mundo onde estava, afinal, um pouco de sua tão própria vivência e visão. Guardada e muda nele mesmo como se Ivan tivesse vendas na boca em os olhos. No pensamento.

       E, de fato, mesmo indo a lugares de círculos literários de sua cidade provinciana, mesmo caminhando pelas ruas, jamais poderia, conseguiria dar à luz a aresta certa de polida geometria... era patente a frustração que sentia pelo necessário esforço em vão que aplicara para escrever, já que quase nenhum leitor e dinheirinho na algibeira ele conquistou, jamais iria conquistar, eu confesso. Não tivera sorte de ter família rica e de um nível intelectual que compreendesse a sua arte. Acabou por desistir pela incompreensão dos outros e pelo que, de início, sem entender, com revolta, considerara uma desvalorização das pessoas com relação a seu trabalho.

       Seu romance, o único que quase conseguiu terminar, lá pela páginas mal revistas que eram umas 300, ficou incompleto na gaveta de seu escritório tomando traças. E digo que ninguém (aliás a pouquíssimos Ivan tinha o prazer de conversar sobre literatura, quanto mais ler-lhes seus trabalhos) deu por falta daquela que poderia ser, sim, segundo ele me disse depois, "uma grande obra de arte perdida ao mundo". Disse-me que seu intento era que ela tivesse por volta de quinhentas páginas e que, mesmo esboçada em pensamento, tinha em sua mente já todo o desenrolar da trama de seus muitos personagens.

       O mundo ignorado de "Confidências de Um Louco Reabilitado", segundo me passou o título, nada perdeu...; quem perdeu e se azedou de vez foi Ivan, que continuou, realmente, esquecendo aos poucos daquelas primordiais páginas digitadas e salvas no disquete, assim como foi se esquecendo de tantas coisas mais, que aqui não ousarei dizer a pedido do rapaz, como da voz surda que o perturbava e despertava no meio da noite para que ele se sentasse e mais escrevesse. Mesmo pela graça divina do tempo que dá bálsamo aos artistas aflitos a qual, aos poucos, foi ganhando.

       Na realidade disso tudo, ficou o sonho a lhe zunir como mosquitos nos ouvidos pelos dias todos de sua vidinha ordinária. Mas os mosquitos incomodavam muito menos do que suas arrebatadas volúpias de criar. Uma paz de cemitério cheio da mais fina relva que o ia libertando vagarosamente. Mas sua memória, tão funda como uma cisterna, pungia, doía por algo que tanto amara e que dele fora tirado, roubado, algo que jamais poderia ter sido. Entretanto, ele, aos poucos, foi se resignando pelo insolúvel de seu fracasso profissional. Ficou nele, nessa lacuna onde nada, nada coube e de que ninguém jamais dela tomaria conhecimento (ele conversando consigo mesmo), ficou uma solidão e uma tristeza que, de tão grandes, o preenchiam e a qual ele chamava, vez ou outra, fixamente, pelos anos diluídos, de "Sua Tristeza Grande"...

Entre Sombras e FrutosWhere stories live. Discover now