Vocação Para Mergulhos Interiores

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       Gilberto, por mais que recostasse sua lombar no divã, naquelas horas de descuido aos dias e às noites, notava que sempre algo lhe faltava, algo lhe estaria além. Era uma pausa do trabalho, dos afazeres diários com a esposa e os filhos adolescentes, era um momento só seu onde poderia finalmente: ser.

       E, notava, à medida em que avançava no que poderia se chamar de graça, de prece, de um esvaziamento de qualquer pensamento, que a verdade absoluta, que aprendera desde cedo com os pais, de tradição muito religiosa, na fazenda onde passara a infância, e nas aulas de catecismo da escola, notava que a verdade absoluta não existia, não dependia e não viria jamais de ninguém. Nem dele mesmo que era, como tudo neste mundo natural, tão mutável e tão cheio de facetas, que se mostravam ora ou outra como fotografias estáticas de um caleidoscópio.

       E, indo mais em suas reflexões, o cavalo da mente domado em correia firme, percebia que aquilo, que chamava de beatitude, ou, às vezes, de fato, um êxtase, um encontro com o Real, seguro, confortável, aninhado nele, não era nada além do que um encontro consigo mesmo, em sua peculiaridade como ser humano único que era...

       E que 'aquilo' nada lhe tirava e nada lhe dava além do que havia nele mesmo, comum, e ao qual, após destapados os olhos, retornava, como se sempre tivesse estado ali, imóvel, a lhe esperar apenas o gesto imperativo seu de investigar, de conhecer a si mesmo um pouco mais.

       E, por hora, Gilberto pensava, aqueles minutos inertes no divã do escritório, a família estranhando suas poucas conversas ("Ah, o pai endoidou de vez...") --- por hora aquele silêncio em que nada pensava, e que perdurava, o café esfriando em cima da mesa, o relógio batendo os imperceptíveis segundos, lhe bastava.

       Durava pouco tempo, mas Gilberto sabia, ora ou outra, em meio a uma reunião de trabalho ou entre a família, entre seus mil papeis assumidos esperando por uma leitura livre, leve, superficial, uma assinatura tola que para ele (seu nome) perdia cada vez mais seu valor, poderia regressar aquele oásis de si em meio ao turbulento mundo.

       Então passou a ir aos domingos sozinho ao parque, deixando Lúcia, com a qual não partilhava aqueles devaneios (o casamento até entrou em crise: mas tinha ele mais alguém? se interessava afinal pelo que com ela não partilhava?), e, entre aleias floridas de frente a uma lagoa e muita relva, ali deitado de costas mirando o céu muito azul com suas nuvens largas, esgarçadas, podia se entregar à sua meditação simples, profunda e lenta como sua respiração. Nesses momentos, ao passar a praticar mais e mais este exercício, deixando passarem e se irem os pensamentos, nem seus pensamentos pensavam mais.

       Mas ele não dividiria aquilo, oh, tão íntimo, tão subjetivo, que mal poderia expressar com palavras, com ninguém! Recusou-se a ir às sessões de terapia de casal que Lúcia propusera e tanto insistira para que fosse, até sob ameaças de abandoná-lo, ela inconformada, perplexa, sem entender no que "se transformara o seu homem!"

       De fato, o casamento, as birras dos adolescentes requerendo mais atenção, quase foi à bancarrota. Mas, passados meses, Gilberto, no jantar de sábado, sutilmente pronunciou, após meses, a frase que acalmou a todos, que não se deram lá muito por felizes e atendidos em seus ímpetos egoístas e caprichos:

       --- Meus caros, só posso lhes garantir uma coisa, após tantos meses de silêncio, quase um retiro: nunca me senti tão feliz nesta vida. Aprendam a fazer o mesmo, desapeguem-se de tudo. Comecem por escolher uma hora certa de seus dias para começar a praticar.

       Inútil dizer que só não tomaram gosto pela ideia, como mais o criticaram, o "pai" que os negligenciava, que era frio, que mal os amava. Um "amalucado", enfim, reagiam com esta agressividade pelo sentimento de frustração e impotência em não conseguirem fazer com que Gilberto fizesse e fosse aquilo que eles gostariam que fosse. Em sussurros pequeninos de ratinhos, pelos corredores da casa, os três filhos sussurravam ainda para a mãe, para que o homem pudesse escutar, tolos e já meio adaptados que iam ficando, até com certo bom-humor e risos moles:

       --- É, meus filhos, papai se tornou isso mesmo. Nem para trabalhar, credo-em-cruz! Melhor é aceitar.

Entre Sombras e FrutosWhere stories live. Discover now