O Eu e o Mundo

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       Gildo estava morto. Lembrava-se sem remorso, indiferente, num vazio de poço profundo de quando abandonara, já há dez anos, a faculdade.

       As memórias, todas mal ligadas e trazidas para o presente, como roupa mal ajambrada, como fantasmas, de repente soltava-as até que sumissem na brisa. Sofria há muitos anos de uma depressão leve, porém perene, como uma linha crônica cobrada de fases descendentes.

      De casa para o trabalho de balconista em uma padaria (que estava quase perdendo devido à grande e horrível crise econômica do país), e da padaria para casa. No trabalho, pálido, esquecia-se de si mesmo, pelo menos por alguns instantes, como se esquecia às vezes a pesagem dos laticínios e defumados que os clientes, com irritação, lhe cobravam. Como se pudesse, enfim, atirar o que ele era (suas memórias) num ralo de pia pequena, no cesto de lixo de um sistema ao qual pertencia e do qual não gostaria mais de pertencer. Um sistema que encadeava, grudava, engolia todos nós, mesmo que não quiséssemos, mesmo que não soubéssemos.

       Mas o problema de Gildo era que ele sabia, e muito bem, o que em nada o ajudava em sua infeliz, patética tentativa de libertação, mas antes o tornava mais lucidamente amargo.

       Mas sua vontade maior, e que se resumia a uma só, quase como uma obsessão, após a morte de tantos sonhos seus e aos quais, por prejuízo, se agarrara como a um bote salva-vidas que só servira mesmo para mais o machucar --- sua vontade maior era viajar à praia.

       Amava a praia ensolarada nos dias de verão e as ondas verdes do mar de Mongaguá... amava como as ondas se armavam e seus lombos lisos de borracha explodiam em espumas pela areia. Mas o salário mínimo que recebia mal dava para pagar seu frugal almoço de ovo estalado que devorava rapidamente para bater o ponto para seu patrão, Seu Dino, Dinossauro, como Gildo o chamava.

       Às vezes pensava em seu quarto, a luz apagada antes de dormir, fitando a escuridão: e se ele estivesse, assim como todos, morto, e mal disso soubesse? Quando pensava nisso, demorava a pegar no sono, ou passava as noites todas acordado ao esmo negrume do quarto. Se estivesse morto, como agiria no mundo? Com certeza, se estivesse morto, dormiria muito menos, andaria muito menos, falaria menos, trabalharia menos... Desejaria muito menos --- as cancelas interditadas de seu largo e luxuoso caminho de rapaz pobre. Não falaria menos por revolta ou incapacidade de conceber (ele que era inteligente), mas por não ter nada a dizer de fato.

       E assim, meio que como um fantasminha (ele divertia-se), lembrava-se do dia em que pintou as flores do campo numa viagem que fizera às serras, em tintas a óleo azuis, pardas, rosas. Pensava nos caules longínquos dos eucaliptos. Na lagoa de superfície estática cercada de xinus que derramavam, ao reflexo do sol poente, suas copas rarefeitas sobre a água. A estas lembranças misturavam-se as da cidade onde vivia: mulheres feias e decrépitas jogando carteado no bar, homens pobres e esfarrapados, bêbados, sujos, andando curvados e bambos pelas ruas. Eram todos eles os frutos das cidades, os comerciantes, os empresários, os banqueiros e os mendigos dormindo sobre os bancos frios da praça cobertos por folhas jornal.

       A fumaça dos inúmeros cigarros, a paleta e as tintas, os pinceis bem lavados e guardados em potes, o mofo da própria vida, tudo isso Gildo ia abandonando, largando para lá num enorme cansaço de viver ou permanecer vivo em suas imaginações de morto-vivo --- como tudo entre os homens não passa de uma imaginação, um delírio.

       Da casa para a padaria, da padaria para casa, não fazia diferença. Pelo menos isso, o corpo batido cheio de cascas grossas, marcado como o de um boi pela indústria que se locomove e continua a expelir veneno nos ares sem o menor sentido e razão. O caos geral era muito maior do que Gildo, até que tudo aquilo tivesse o seu fim, ele esperava, de coração acalantado.

       Esta sua legítima, ligeira fé, esta esperança para o mundo, para que este fosse outro, uma melhor versão, existia, ainda, dava graças! Mesmo que seu corpo fosse travado, seus pés e pernas amarrados no caminhar vacilante e aos pulinhos de uma criancinha que brinca de corridas de elástico. A despeito de tudo existia ainda uma a alma dentro dele, quase extinta, como a flama num algodão, como um lampião que, ao maior susto, além de todos outros, pudesse se apagar definitivamente... Mas não se apagaria, Gildo sabia certamente, pois já vira esta chama e com ela se alegrara, como ele se alegrara, há alguns meses passados e indeléveis na memória!... Memória de uma luz intensa a se lhe irradiar por todo este novo corpo que ganhava desde então, e que velaria, eternamente, mesmo que em meio a este mundo onde prevaleciam trevas.

Entre Sombras e FrutosWhere stories live. Discover now