Capítulo 44 - Silêncio

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   Foi necessário cerca de um mês para que permitissem que voltássemos para a cidade. Estávamos ansiosos. Guardamos tudo e nos arrastamos até o portão. Rainara estava à flor da pele, louca para recomeçar. Queria montar outra tenda, vender mais coisas, com melhores preços, já tinha até ideias para atrair clientes. Tagarelava sobre isso enquanto tínhamos nossa última refeição ali. Eu não sentiria falta nenhuma. O lugar improvisado na verdade me fazia sentir uma ansiedade ainda maior para voltar.

   Ninguém sabia como estava a cidade, entretanto. Apenas os soldados tinham permissão para ir lá antes de nós e eles se recusavam a contar qualquer coisa. Meu pressentimento não foi embora. Às vezes sumia por um tempo mas sempre voltava. Tive alguns pesadelos e cheguei a ficar acordada por noites inteiras. Ethan estava preocupado. Às vezes ficava - ou, melhor, tentava - ficar acordado comigo, criava teorias malucas sobre meus sonhos para me fazer sorrir. Meu medo era que aquilo fosse sobre Dalila. Eu passava maior parte do dia perto dela, atenta a qualquer coisa. Eu achava engraçado quando meu pai me dizia que pais, especialmente as mães, têm pressentimentos - o sexto sentido. Agora, sei que tudo é verdade.

   Passamos as últimas semanas ajudando o pessoal da cozinha e do armazém. Ficávamos no tédio boa parte do tempo. Quero dizer, todos os outros ficavam porque eu e Ethan tínhamos que cuidar de Dalila. Eu adorava vê-los juntos. Ele ficava tão feliz quando ela sorria para ele ou quando estendia a mãozinha. Até aquele momento, tudo estava dando certo, tudo ia bem: minha relação com minha filha, com Ethan, com Rainara. E, mesmo assim, o pressentimento não me deixava.

   Ethan teve pesadelos também. Seus olhos mudavam de cor às vezes. Eu e ele sofríamos para dormir. Temíamos ser acordados um pelo outro com chutes, lágrimas ou gritos. Ele me contava que via os anjos, que eles lhe diziam que seus poderes não seriam mais necessários e que sentia dor por todo corpo, como se algo estivesse sendo tirado dele. De fato, estava. Seus poderes estavam sumindo. Ele não conseguia mais mover água, fazia um grande esforço para formar sincelos. De certa forma, ele estava frustrado. Acho que eu também ficaria.

   Além disso, tinha pesadelos com a guerra e eu rezava para que ele não enlouquecesse. Era terrível demais. Um dia, acordei ao escutar soluços abafados. Sentei-me rapidamente e encontrei Ethan no chão, encostado na cama, os cotovelos apoiados nos joelhos, o rosto entre as mãos. Eu nunca o vi daquele jeito. Meu coração encolheu dentro de meu peito. Sentei-me ao seu lado e comecei a acariciar seus cabelos, esperando que se acalmasse. As olheiras dominavam seu lindo rosto, as lágrimas o malhavam completamente. Meu coração doeu e se partiu, tive medo que ele pudesse perceber. Queria que ele me visse como um apoio, então segurei as lágrimas. Seus olhos estavam vermelhos, cansados.

   —Desculpe —Disse, encostando a cabeça em meu ombro. —Não quis te acordar.

   —Deveria ter me acordado.

   —Mas você anda tão cansada e... —Parou para voltar a chorar.

   —O que houve, Ethan? —Perguntei, sem deixar de abraçá-lo.

   Eu queria poder tirar toda sua dor, queria poder fazer passar. Respirei fundo.

   —Eu vi todo mundo dessa vez: você, Dalila, mamãe. Todas vocês... mortas por minha culpa. Mamãe me disse que era minha culpa. Doeu tanto, tanto. Eu vi você... —Parou para mais um soluço. —Eu não quero perder vocês. Não quero te perder.

   —Mas a guerra já acabou, Ethan. Sua mãe não morreu por sua causa e ela nunca te culparia por isso. Eu estou aqui, estou ao seu lado. Dalila está bem ali —Apontei para o berço. —Estamos bem. Estou aqui —E dei um beijo em sua testa. —E sabemos que eu sou mais capaz de te matar que o contrário.

Os Dons de Lithia: Entre o Amor e a Guerra Where stories live. Discover now