D.KRESTH

d e z e s s e t e

Eu suguei a ponta do cigarro entre meus dedos e soprei a fumaça para cima, contemplando a maneira como a névoa parecia camuflar-se entre as nuvens; como se estivesse realmente perto.

O silêncio encaixando-se perfeitamente ao momento quase obscuro que sucedia diante de meus olhos, até que mãos gélidas e macias tocaram-me os ombros, despertando-me da melancolia.

— Você não deveria estar tentando se matar no dia da morte do seu irmão — Megan repreendeu-me, abraçando seus braços por conta do clima álgido.

Eu traguei a fumaça depois de afastar o cigarro de meus lábios e soltei o ar em seu rosto quando voltei a encara-lá.

— Ryan não morreu em 12 de outubro. Essa é só mais uma data, Meg. Ele morreu muito antes disso.

Nós permanecemos em silêncio por vários segundos, inexpressivos. Até que suas íris azuis desceram para os meus lábios e um vinco se formou em minha testa quando, de repente, ela aproximou-se e com uma das mãos retirou o cigarro de minha boca e encaixou-o na sua.

Megan tossiu algumas vezes e, em seguida, friccionou os lábios como se degustasse os resquícios do tabaco, para então soltá-los em um estalo.

— Horrível, do jeitinho que eu imaginei. — Ela comentou, e eu apreciei o meio sorriso que iluminou o seu rosto, assim como apreciara todos os outros traços que conciliavam com tudo que nela era tão belo e angelical. — O que foi? Estou com sujeita nos olhos?

Meus lábios ergueram-se sutilmente e eu balancei a cabeça.

— Não, anjo. Você está linda.

Suas bochechas ruborizaram-se ainda mais quando ela impulsionou seu corpo para cima com a ponta dos pés e fechou os seus olhos, esperando que eu a beijasse.

E foi o que eu fiz.

Megan permitiu que minha língua entrasse em sua boca e eu a beijei enquanto segurava seu rosto em minhas mãos, explorando cada centímetro de seu semblante como minha língua explorara cada canto de sua boca.

Ela devolveu-me o beijo como se eu fosse o seu oxigênio e eu a beijei como se pudesse respirar sem ele.

Eu arrastei meus dentes com delicadeza pelo seu lábio inferior e o mordi, afastando-me a contra gosto quando senti minha nuca queimar de modo que fizera-me tirar os olhos de Megan para então girar o meu corpo em direção a grande e exuberante entrada de Saint Thomás Church, encontrando o olhar nebuloso de Kendall Cannes nas portas do paraíso.

(...)

— Aqueles que foram apreciados em vida até que finalizaram seu tempo em terra, serão lembrados com toda honra e glória dentro de nossos corações. Contudo e muitas vezes, nós precisamos deixar sair aquele último e angustiante suspiro para então libertar a sua alma e, com isso, a dor que sentimos, também.

Eu quase esforço-me para não rolar os olhos diante das palavras simuladas do pastor López.

Há no mínimo cinquenta pessoas sentadas na ala central da igreja, de frente para o altar onde o pastor está e, logo ao seu lado, o coral composto por homens e meninos.

Os convidados de meus pais enxugam os cantos perceptivelmente secos de seus olhos e assentem para o discurso, exclamando a palavra 'amém' em uníssono.

Tento capturar o timbre de sua voz, fechando os olhos para alcançar a parte intocada de minha memória, e me pergunto o que Ryan diria se estivesse aqui e pudesse testemunhar a oração fúnebre que ocorrera em sua homenagem. Talvez sua risada ecoasse como as badaladas do sino celestial antes que ele dissesse algo como 'ei, desgraçados, eu estou adorando toda essa veneração, mas não se esqueçam de enxugar as suas lágrimas com o dinheiro de meu pai para que ao menos e, de alguma forma, ele pague por tudo isso.'

— Patético. — Audrey Sutliffer desdenhou, sentando-se ao meu lado. Enquanto eu a encarava, surpreso, ela prosseguiu. — Eu deveria simplesmente mandá-lo ir a merda com essa idéia estúpida de que existe um Deus que não nos dá dores que não possamos suportar.

Há uma escuridão em suas orbes, acompanhada de olheiras arroxeadas e profundas logo abaixo de seus cílios castanhos. Ela usara o vestido de cor rosa desbotado que Ryan havia lhe dado pouco antes de completarem um ano de namoro e não parecia se importar em ser a única que não vestira preto, cinza ou cores mórbidas que se encaixavam ao momento.

Ela não parecia se importar com nada.

E era evidente que Audrey ainda se culpava por não terem tido a chance de concertar a pequena tempestade que ocorrera entre eles naquele mesmo dia antes que o verdadeiro estrago acontecesse.

— Eu estou cansada de todo mundo me dizendo que eu preciso ser forte. Eu sou fraca. Eu quero ser fraca. Porque se eu finalmente superar um pouco que seja, então isso significa que realmente aconteceu e eu não estou pronta para deixá-lo partir de mim.

Seus olhos marejados encararam-me por vários segundos até que eu toquei seus ombros com as mãos e puxei seu tronco para perto do meu, permitindo que ela deitasse sua cabeça em meu peito.

— Você não precisa deixá-lo ir para perceber que sempre foi e é muito mais forte do que pensa e do que jamais soube. Mas precisa superar a morte dele antes que ela supere você.

Depois de um longo momento em silêncio, o pastor López encerrou suas orações e algumas pessoas aproximaram-se do altar para despedirem-se dele enquanto outras, como eu, apenas direcionaram-se até a saída.

Audrey havia ido embora um pouco antes e eu a fiz prometer que me ligaria caso precisasse.

Eu olhei ao redor e fixei meus olhos nos anjos esculpidos em uma das estatuetas de mármore no interior da igreja; uns com harpas, outros com flautas e apenas um com o sorriso que causara-me pesadelos, noite após noite, apoiado no queixo que estivera sempre mais levantado do que qualquer outro, e, logo acima, as íris esverdeadas que me desafiavam a escolher entre o céu e ou cair como pecado em seu inferno.

Há uma nuvem negra sobre nós e eu vislumbro dois pequenos chifres tomando forma em sua cabeça, como os do diabo, apontados em minha direção, concebidos para perfurarem a minha alma dolorosamente.

— Eu sinto muito — ela disse, com a inocência de um anjo.

Sem asas.

Sem auréolas.

Anjo?

Não.

Muito longe disso.

— Eu também, Kendall — eu respondo, como se o seu nome fosse a minha religião e, também, o veneno fresco em meus lábios.